O STF, as Interceptações Telefônicas e a Duração Razoável da Investigação Criminal

Rômulo de Andrade Moreira

Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS. Pós-graduado pela Universidade de Salamanca.

 

Em julho de 2013, o STF reconheceu a existência de repercussão geral da matéria tratada no RE 625263, no qual se discutia a possibilidade de se renovar sucessivamente a autorização de interceptação telefônica para fins de investigação criminal, sem limite definido de prazo. À época, o relator, Ministro Gilmar Mendes, afirmou que a questão discutida no processo era constitucional e “transcendia interesses meramente particulares e individuais das partes envolvidas no litígio, restando configurada a relevância social, econômica e jurídica da matéria”, ressaltando que “a solução a ser definida pela Corte balizaria não apenas o recurso específico, mas todos os processos em que se discutisse o tema”, lembrando, outrossim, que a “jurisprudência do STF tem se manifestado sobre o assunto, admitindo, em algumas hipóteses, a possibilidade de renovação do prazo das interceptações telefônicas”.

Agora, quase nove anos depois, nas sessões realizadas nos dias 16 e 17 de março, concluiu-se o julgamento do recurso. No seu voto, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que “a interceptação telefônica pode ser prorrogada por períodos sucessivos de 15 dias, enquanto a medida for necessária, adequada e proporcional.” O Ministro Alexandre de Moraes, apesar de divergir do relator apenas quanto ao caso concreto, também se manifestou pela possibilidade de renovações sucessivas das escutas, mediante fundamentação, lembrando “que conversas importantes sobre crimes complexos são geralmente identificadas após vários meses de escutas. Essas investigações levam tempo, e deve haver paciência para se chegar a uma conclusão efetiva.”

Ao final, por unanimidade, o STF decidiu que é possível a renovação sucessiva de interceptações telefônicas, desde que fundamentada e demonstrada a necessidade da medida com a apresentação de elementos concretos e da complexidade da investigação, aprovando-se a seguinte tese de repercussão geral:

“São lícitas as sucessivas renovações de interceptação telefônica desde que, verificados os requisitos do artigo 2º da Lei 9.296/1996 e demonstrada a necessidade da medida diante de elementos concretos e a complexidade da investigação, a decisão judicial inicial e as prorrogações sejam devidamente motivadas, com justificativa legítima, ainda que sucinta, a embasar a continuidade das investigações. São ilegais as motivações padronizadas ou reproduções de modelos genéricos sem relação com o caso concreto”.

Pois bem.

Como se sabe, a Lei 9.296/96, que regulamenta a interceptação telefônica, define que as escutas devem ser determinadas por meio de decisão judicial fundamentada, não podendo exceder o prazo de 15 dias, renovável por igual período, quando comprovada a indispensabilidade desse meio de prova. A possibilidade, portanto, de renovação desse meio de obtenção de prova está prevista na própria lei de regência, por cada quinze dias, desde que comprovada (fundamentadamente) a sua necessidade e a sua indispensabilidade, sem limite (a princípio, como se verá adiante) de períodos.

Evidentemente, a decisão judicial que determine a prorrogação das interceptações deve ser rigorosamente fundamentada, nos termos do artigo 315 do CPP, que exige, expressamente, e sob pena de nulidade (conforme o inciso V do art. 564) -, que qualquer decisão judicial – interlocutória, sentença ou acórdão – seja fundamentada, não podendo se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida. Aliás, um dispositivo legal com esta exigência seria despiciendo, considerando-se o disposto no art. 93, IX da CF. Aqui, encontra-se, rigorosamente, a legitimidade do Poder Judiciário, afinal, como afirma Ferrajoli, “a legitimidade da função jurisdicional, que reside nos vínculos impostos pela lei como garantia de seu caráter cognoscitivo e para a tutela dos direitos dos cidadãos, é sempre parcial e imperfeita.”[1]

Aliás, conforme Gomes Filho, a motivação das decisões judiciais responde, muito especialmente, a duas garantias: uma política e outra de natureza processual. Para ele, “nos regimes democráticos a legitimação dos membros do Judiciário – que não resulta da forma de investidura no cargo – só pode derivar do modo pelo qual é exercida sua função.” Logo, “a motivação das decisões judiciais adquire uma conotação que transcende o âmbito próprio do processo para situar-se, portanto, no plano mais elevado da política, caracterizando-se como o instrumento mais adequado ao controle sobre a forma pela qual se exerce a função jurisdicional.” Por outro lado, como garantia processual “a fundamentação constitui um dos requisitos formais das decisões (ou de determinadas decisões) e, como tal, vem tratada nos códigos e leis processuais que, com essa exigência, buscam atender a certas necessidades de racionalização e eficiência da atividade jurisdicional.[2]

Ainda neste aspecto, acresce-se que a motivação das decisões judiciais decorre “das garantias do devido processo, especialmente da presunção de inocência”, conforme a lição de Fernando Díaz Cantón.[3]

Portanto, como já foi consignado, desde um ponto de vista político, a motivação das decisões judiciais cumpre um papel fundamental para legitimar a própria função jurisdicional, pois permite que haja uma transparência das decisões judiciais, bem como um democrático controle por parte dos jurisdicionados, sejam (imediatamente) as partes no processo, seja o cidadão.

Neste sentido, Julio Maier acentua que “o controle público da sentença judicial significa, politicamente, num Estado democrático, outro mecanismo que procura alcançar a independência judicial, através da crítica popular, incluindo a imprensa.”[4]

Afinal, “o juiz recebe do povo, através da Constituição, a legitimação formal de suas decisões, que muitas vezes afetam de modo extremamente grave a liberdade, a situação familiar, o patrimônio, a convivência na sociedade e toda uma gama de interesses fundamentais de uma ou de muitas pessoas. Essa legitimação deve ser permanentemente complementada pelo povo, o que só ocorre quando os juízes estão cumprindo seu papel constitucional, protegendo eficazmente os direitos e decidindo com justiça. Além de tudo, é o povo, de quem ele é delegado, quem remunera o trabalho do juiz, o que acentua a sua condição de agente do povo.”[5]

De toda maneira, importante também observar que, nada obstante a possibilidade de prorrogação do prazo da interceptação telefônica, a investigação criminal não pode perdurar por tempo indeterminado. Neste sentido, o Ministro Ricardo Lewandowski, nos autos da Reclamação 46353, determinou o arquivamento de dois inquéritos, reconhecendo excesso de prazo para a conclusão das investigações criminais, em evidente afronta ao devido processo legal. Citando precedentes monocráticos da própria Suprema Corte, o relator reafirmou que o excesso de prazo para a conclusão de uma investigação criminal “viola o direito do investigado à razoável duração do processo, norma constitucional que tem força normativa para abarcar os inquéritos policias, nos termos do artigo 5º., LXXVIII, da Carta de Direitos.”

Conforme ressaltou, é preciso que se aplique na interpretação daquele dispositivo constitucional o princípio da máxima efetividade, “princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas (THOMA), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).”

Para Canotilho, o princípio da máxima efetividade, também designado princípio da eficiência ou princípio da interpretação efetiva, pode ser formulado da seguinte maneira: “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê.”[6]

Muito a propósito, Fauzi Hassan Choukr aponta quatro tendências legislativas a respeito do tema, a saber: a) determinação específica ou não do prazo para ultimação da investigação; b) o termo a quo para sua contagem; c) o controle caso seja excedido; e d) sanções em caso de superação sem manifestação. No Brasil, conforme observa o autor, “muito embora tenha o legislador procurado delimitar temporalmente o trâmite da investigação, não soube fazê-lo, criando um artigo superficialmente rigoroso (artigo 10, CPP), mas praticamente inoperante, além de tecnicamente imperfeito.”[7]

Também Aury Lopes Jr. e Ricardo Gloeckner entendem que a investigação preliminar deve ter uma duração máxima limitada em lei, propondo que haja uma forma de controle que assegure a eficácia da limitação temporal, nos moldes do art. 407.3 do Código de Processo Penal italiano, aplicando-se a pena de inutilizzabilità. Para eles, adotado o sistema italiano, “a partir do momento em que os atos são considerados inúteis, não existe justa causa para manter em ´aberto` a investigação preliminar e ela deve ser trancada através do habeas corpus ou, ainda, por simples petição do juiz garante.[8]

Importante ressaltar, conforme assinala Bertolino, respaldando-se, aliás, em lição antiga de Carnelutti, que “somente a existência do processo penal representa para o processado uma restrição à sua esfera de liberdade, pois, conforme já o dissera Carnelutti, o processo penal, por si só, já é uma pena”; de maneira que “o tempo que leva a tramitação do processo deve, em princípio, ter uma justa e razoável determinação.”[9]

Conforme acentua Daniel Pastor, “é precisamente no processo onde a relação entre tempo e direito mostra-se mais estreita, até um ponto em que ambos os conceitos confundem-se; a própria representação mesma do conceito de processo já sugere a ideia do tempo como componente principal.” Para este autor, “o lapso que se estende entre a notícia oficial de que foi praticado um fato punível e a realização efetiva da lei penal, em qualquer dos seus sentidos, é, precisamente, o tempo total do processo.”

Eis a razão pela qual o tempo do procedimento investigatório criminal deve ser considerado para efeito de aplicação daquela cláusula constitucional, aplicando-se o princípio da máxima efetividade, conforme Canotilho.

Seria um grave equívoco hermenêutico e um atentado mesmo aos direitos fundamentais, limitar-se a expressão “duração razoável do processo” à segunda fase da persecutio criminis, ou seja, a fase judicial propriamente dita; pelo contrário, deve-se também entender que a fase investigatória (preliminar ao exercício da ação penal) não admite igualmente dilações indevidas, afinal, conforme lição de Daniel Pastor, “desde o ponto de vista da efetividade da atividade penal do Estado, a realização da lei penal substantiva não tolera tardanças, visto que elas acabariam por desnaturalizar o sentido da reação punitiva, comprometendo seriamente sua justificação e seus fins.”[10]

No mesmo sentido, Leone observa que “o tempo no ordenamento processual pode ser visto como um curso e como um ritmo de coordenação formal; no primeiro sentido, vê-se o tempo real ou cronológico (Mannheim), ou seja, o tempo considerado em seu curso e medido com instrumentos e critério tradicionais (a ampulheta, o relógio, o calendário). No segundo sentido, surge o tempo processual, entendido como o ritmo de coordenação formal das atividades processuais.[11]

É exatamente esse tempo processual que deve estar submetido, num Estado Democrático de Direito e sob o pálio do devido processo legal, a um rígido controle, seja legal, seja judicial. Portanto, ainda que seja possível a prorrogação da interceptação telefônica, é preciso também atentar para a duração razoável da investigação criminal, compatibilizando-se, assim, as duas decisões da Suprema Corte acima referidas.

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[1] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón – Teoría del Garantismo Penal. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 547.

[2] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, páginas 79, 80 e 95.

[3] CANTÓN, Fernando Díaz. La motivación de la sentencia penal y otros estudios. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2005, p. 107.

[4] MAIER, Julio. Antología – El Proceso Penal Contemporáneo. Peru: Palestra Editores, 2008, p. 750.

[5] DALARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 2002, pp 89-90.

[6] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1210.

[7] CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 158.

[8] LOPES JR., Aury e GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 413.

[9] BERTOLINO, Pedro Juan. El exceso ritual manifiesto. La Plata: Libreria Editora Platense, 2003, p. 107.

[10] PASTOR, Daniel R. El plazo razonable en el processo do Estado de Direito. Buenos Aires: AD-HOC, 2002, pp. 87 e 88.

[11] LEONE, Mauro. Il tempo nel Diritto Penale sostantivo e processuale. Napoli: Casa Editrice Dott. Eugenio Jovene, 1974, p. 298.