Os honorários advocatícios de elevado valor no CPC de 2015: por uma jurisprudência íntegra, estável e coerente

Por Gisele Mazzoni Welsch, Larissa Clare Pochmann da Silva e Renata Cortez

No dia 13 de dezembro de 2022, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou à Corte Especial os Recursos Especiais nº 1.824.564/RS e nº 1.743.330/AM, de Relatoria do Ministro Moura Ribeiro, pretendendo levar à composição máxima do Tribunal o debate acerca do cabimento ou não da fixação de honorários equitativos em causas de valor elevado a partir dos dispositivos do Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015) que regulamentam o tema.

É importante recordar que a matéria já foi objeto de análise pela Corte Especial do STJ em março de 2022 (acórdão publicado em maio), no julgamento do Tema nº 1.0761, em que foram assentadas as seguintes teses:

1) A fixação dos honorários por apreciação equitativa não é permitida quando os valores da condenação ou da causa, ou o proveito econômico da demanda, forem elevados. É obrigatória, nesses casos, a observância dos percentuais previstos nos parágrafos 2º ou 3º do artigo 85 do Código de Processo Civil (CPC) – a depender da presença da Fazenda Pública na lide -, os quais serão subsequentemente calculados sobre o valor: (a) da condenação; ou (b) do proveito econômico obtido; ou (c) do valor atualizado da causa.

2) Apenas se admite o arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação: (a) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito baixo.

Apesar do efeito vinculante das teses fixadas no Tema 1.076, a temática da fixação dos honorários por equidade continua sendo debatida nos tribunais brasileiros e, em consequência, chegando ao STJ. Daí porque, no julgamento dos Recursos Especiais nº 1.824.564/RS e nº 1.743.330/AM, a Terceira Turma, por maioria, decidiu afetar novamente a questão à Corte Especial, que teria por finalidade estabelecer uma hipótese de distinguishing em que o enunciado não teria aplicabilidade. No julgamento da questão preliminar, a Ministra Nancy Andrighi destacou que: “Essa dissidência não está acontecendo só na 3ª turma, está acontecendo inclusive nas turmas de Direito Público. A Corte precisa parar para rever se está certo ou errado, se confirma ou não confirma essa decisão”. O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva também ressaltou que “É um tema delicado. A desproporção é flagrante”2.

No dia seguinte, 14 de dezembro, conforme noticiado pela imprensa3, após o Ministro Raul Araújo propor a desafetação do REsp 1.822.171, que seria julgado pela 2ª Seção com a mesma discussão, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva esclareceu que o propósito da afetação dos Recursos Especiais nº 1.824.564/RS e nº 1.743.330/AM à Corte Especial não é rediscutir a tese e nem promover a superação da tese estabelecida no Tema 1.076, mas definir e uniformizar a interpretação sobre possíveis distinções nas quais a tese não deve ter incidência, garantindo a estabilidade e a coerência das decisões sobre a matéria.

A questão envolve pelo menos dois temas relevantes para o direito processual: (i) preliminarmente, em prol da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima, a manutenção da jurisprudência íntegra, estável e coerente; (ii) o acerto da Corte Especial ao decidir sobre a fixação equitativa de honorários advocatícios em causas de elevado valor a partir das disposições do CPC/2015 e a desnecessidade de revisitação da matéria.

Com a edição do CPC/2015, pode-se dizer que há um sistema de pronunciamentos qualificados, ou de jurisprudência e precedentes definidos legalmente, com caráter vinculativo no sentido vertical e horizontal4, isto é, tanto no que diz respeito aos precedentes formados pelos órgãos hierarquicamente superiores como aos próprios precedentes.

A vinculação prevista no artigo 927 do CPC/2015 é um elemento fundamental do sistema estabelecido por lei e está em consonância com o primado da lei fixado na Constituição5.

A ratio é a observância dos precedentes pelos juízes e pela sociedade, “porque não se trata de opção subjetiva do magistrado, mas de aplicação e de interpretação das leis pelos tribunais, em cumprimento de uma função prevista na Constituição”6, que deve ser feita por meio da adequada instrumentalização da técnica de julgamento pelos tribunais7, para que se possa atingir uma jurisprudência uniforme, íntegra, estável e coerente consagrada no artigo 926 do diploma processual.

Um sistema de precedentes com eficácia vinculante garante julgamentos com margem de previsibilidade e contribui para o fortalecimento institucional e democrático do próprio Poder Judiciário e, por via de consequência, do próprio Estado e da sociedade.

A observância dos precedentes assegura também a isonomia aos jurisdicionados, evitando-se uma dispersão de entendimentos acerca de uma mesma questão de direito. Encontra, portanto, amparo e justificativa na necessidade de proteção da confiança, elemento essencial da segurança jurídica.

É certo que o sistema jurídico brasileiro adotou a técnica de vinculação a precedentes judiciais, própria dos países de common law8, a partir da promulgação do CPC/2015, com a disciplina dos artigos 926 a 928. Inobstante, ainda se verifica, na prática forense, a dificuldade de outorga efetiva de integridade do Direito por meio da uniformização da jurisprudência, em função da não observância e aplicação adequada pelo Poder Judiciário das técnicas e mecanismos disponibilizados pelo sistema, além da ainda insatisfatória função prospectiva realizada pelos Tribunais Superiores.

Para além da previsão do art. 926 do CPC/2015 relativa ao dever de uniformização da jurisprudência pelos tribunais e da manutenção da estabilidade, integridade e coerência, é essencial que o Poder Judiciário (e todos os agentes envolvidos), além de produzir precedentes de eficácia vinculante, maneje adequadamente as técnicas de operacionalização desses precedentes, como a distinção e a superação de entendimentos.

Dessa forma, em prol da manutenção e otimização da segurança jurídica, é preciso que se observem critérios quando há a efetiva necessidade de desenvolvimento e alteração do direito, por meio da mudança de orientação dos tribunais. Não se pode confundir a necessidade de adaptação do direito às mudanças sociais ou eventual correção de erro com alteração de entendimento e opinião dos julgadores em função da mudança de composição de magistrados do tribunal9 ou de pensamento por parte dos julgadores que os compõem.

As funções contemporâneas do Poder Judiciário são fundamentais no sentido de orientar a sociedade diante de novos fatos, da ausência de regras específicas ou da controvérsia estabelecida em relação à interpretação das normas10, mas sempre em consonância com o contexto do Estado Constitucional.

Os órgãos judiciários servem para propiciar a solução dos conflitos e não para fomentá-los, tendo-se a ideia de respeito ao precedente firmado, salvo hipótese de distinção do caso em relação ao precedente e de sua superação, que deve ser feita com a devida cautela, mais amplo respeito ao contraditório e possível modulação, conforme artigo 927, §2º a §4º.

Desta forma, merece destaque que, após a definição da tese com efeito vinculante, é possível que haja divergência considerável entre os órgãos jurisdicionais a respeito das situações de distinção hábeis a afastar a sua incidência, revelando-se possível a atuação do tribunal responsável pela fixação da tese para uniformizar a interpretação acerca das hipóteses de distinguishing.

A técnica de distinção é uma forma de verificar se existem diferenças relevantes entre dois casos ao ponto de se afastar a aplicação de precedente invocado, a qual pode ser realizada por qualquer juiz ou tribunal11. É o que diz, inclusive, o Enunciado n.º 174, do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): a realização da distinção compete a qualquer órgão jurisdicionado, independentemente da origem do precedente invocado.

A Recomendação nº 134/2022 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dispõe sobre o tratamento dos precedentes no Direito Brasileiro, prevê, em seu art. 14, que “poderá o juiz ou tribunal, excepcionalmente, identificada distinção material relevante e indiscutível, afastar precedente de natureza obrigatória ou somente persuasiva, mediante técnica conhecida como distinção ou distinguishing”.

Há uma série de recomendações relativas à distinção, quais sejam: a) explicitação pelo órgão julgador, de maneira clara e precisa, da situação material relevante e diversa capaz de afastar a tese jurídica (ratio decidendi) do precedente tido por inaplicável; b) a técnica não deve ser utilizada com a finalidade de afastar a aplicação da legislação vigente nem para estabelecer tese jurídica heterodoxa e em descompasso com a jurisprudência consolidada sobre a matéria; c) não confundir a distinção e nem utilizar a técnica como mecanismo de recusa à aplicação da tese consolidada; d) considerar a impropriedade da utilização da técnica como via indireta de superação dos precedentes.

Há também orientações importantes na Recomendação 134 do CNJ relativas ao procedimento que deve ser levado a efeito pelos tribunais quando houver distinguishing em relação a seus precedentes (arts. 22 e 23): a) a adoção do procedimento do recurso especial ou extraordinário representativo da controvérsia em situações que indiquem distinção, com a admissão de 2 (dois) ou mais processos e o sobrestamento dos demais feitos com mesma questão jurídica possivelmente distinta; e b) prioridade da análise de casos repetitivos em que se discuta a distinção em relação a precedentes relevantes e a avaliação da possibilidade de instauração de incidente de resolução de demandas repetitivas.

Feitas essas considerações, quando se analisa o julgamento do Tema nº 1.076 pelo STJ, decidido no dia 16 de março de 2022 e com acórdão publicado no dia 31 de maio, verifica-se que houve intensos debates na Corte Especial, que acabou decidindo, por maioria, pela impossibilidade da fixação dos honorários por apreciação equitativa quando os valores da condenação ou da causa, ou o proveito econômico da demanda forem elevados, impondo-se a aplicação dos parâmetros previstos nos §§2º e 3º do art. 85 do CPC/2015. Divergiram as Ministras Nancy Andrighi, Maria Isabel Gallotti, Laurita Vaz, Maria Thereza de Assis Moura e o Ministro Herman Benjamin.

O tema foi analisado com profundidade e no acórdão restaram consignados diversos fundamentos, dentre os quais destacam-se os seguintes:

(i) “não se pode alegar que o art. 8º do CPC permite que o juiz afaste o art. 85, §§ 2º e 3º, com base na razoabilidade e proporcionalidade, quando os honorários resultantes da aplicação dos referidos dispositivos forem elevados”;

(ii) “O julgador não tem a alternativa de escolher entre aplicar o § 8º ou o § 3º do artigo 85, mesmo porque só pode decidir por equidade nos casos previstos em lei, conforme determina o art. 140, parágrafo único, do CPC”;

(iii) “A suposta baixa complexidade do caso sob julgamento não pode ser considerada como elemento para afastar os percentuais previstos na lei”;

(iv) “O art. 20 da “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (…) prescreve que, “nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. Como visto, a consequência prática do descarte do texto legal do art. 85, §§ 2º, 3º, 4º, 5º, 6º e 8º, do CPC, sob a justificativa de dar guarida a valores abstratos como a razoabilidade e a proporcionalidade, será um poderoso estímulo comportamental e econômico à propositura de demandas frívolas e de caráter predatório”;

(v) “a postura de afastar, a pretexto de interpretar, sem a devida declaração de inconstitucionalidade, a aplicação do § 8º do artigo 85 do CPC/2015, pode ensejar questionamentos acerca de eventual inobservância do art. 97 da CF/1988 e, ainda, de afronta ao verbete vinculante n. 10 da Súmula do STF”.

Como se pode constatar, a questão foi decidida este ano, com eficácia vinculante, com clareza e respeito ao contraditório, considerando não só o teor do artigo 85 do CPC/2015, mas tomando por base uma interpretação do ordenamento jurídico em consonância com a visão de um Estado Democrático de Direito, no qual devem prevalecer o respeito à vontade da maioria, a valorização da Advocacia e de sua forma de remuneração através dos honorários, sem esbarrar no respeito aos direitos fundamentais de todos. A adequada fixação de honorários, como analisada pela Corte Especial do STJ em março de 2022, permite a promoção da máxima de que o processo deve ser instrumento para a tutela e efetivação de direitos12, evitando-se a litigância frívola, com demandas aventureiras que sobrecarregam de forma desnecessária o Poder Judiciário.

É certo que o tema ainda está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), no RE 1.412.073, de forma que a abordagem constitucional da matéria poderá ensejar mudanças na aplicação dos §§2º, 3º e 8º do art. 85 do CPC/2015.

Entrementes, em relação ao entendimento fixado pelo STJ, tem-se que os fundamentos contidos no Tema 1.076 são adequados e suficientes para o deslinde da questão, devendo-se pontuar que, quanto mais especificada uma tese jurídica, maior a precisão de sua aplicação ao caso concreto.

Destarte, o que se espera é que, em um curto espaço de tempo, não haja a superação do julgamento da Corte Especial realizado em março de 2022, sob pena de se violar a proteção da confiança e de se estabelecer a insegurança jurídica. Dito de outro modo, ainda não se verifica um quadro de alteração substancial de realidade social a ensejar a superação do entendimento já sedimentado.

No que concerne ao argumento de que a finalidade seria a de uniformizar a interpretação acerca das hipóteses de distinguishing nas quais a tese não deve ter incidência, o fato é que, em relação ao Tema 1.076, o que tem se verificado nos tribunais e no próprio STJ é uma discordância em relação à ratio do precedente firmado, de modo que a técnica da distinção tem sido empregada para fins de recusa e afastamento da aplicação da tese estabelecida, em contrariedade à teoria dos precedentes e à Recomendação 134 do CNJ.

Por isso, revela-se preocupante o retorno da matéria à Corte Especial: pretende-se efetivamente uniformizar as situações de distinção relativas ao Tema 1.076 ou promover, por via transversa, a superação do precedente? Nesse último caso, haveria desrespeito flagrante à estabilidade e à proteção de confiança necessárias para a efetividade de um sistema de precedentes, que deve primar pela estabilidade e pela unidade do Direito.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), enquanto órgão máximo competente para análise da legislação federal, deve assegurar a máxima eficácia do artigo 926 do CPC/2015.

Portanto, no que pertine ao Tema 1.076 e à afetação dos Recursos Especiais nº 1.824.564/RS e nº 1.743.330/AM à Corte Especial do STJ, espera-se que o argumento da uniformização da interpretação a respeito das situações de distinção não esteja sendo utilizado como pretexto para a superação das teses fixadas e que sejam seguidas à risca as orientações da Recomendação nº 134/2022 do CNJ, inclusive com a utilização do rito

dos repetitivos para fins de propiciar a ampliação da discussão acerca das hipóteses de distinção identificadas, a fim de uniformizá-las e de preservar os precedentes firmados, propiciando segurança jurídica e previsibilidade ao jurisdicionado.

Nesse ponto, cabe uma reflexão final sobre o sistema jurídico brasileiro de precedentes. Não se pode ter a ilusão de que apenas a previsão legal de institutos processuais e técnicas de julgamento visando à celeridade e isonomia de tratamento a casos análogos tornarão o Judiciário mais célere, imprimindo maior segurança jurídica. Dessa forma, é nítida a necessidade de mudança cultural e operacional da comunidade jurídica para que as reformas legislativas possam colher positivos resultados quanto à obtenção de estabilidade e unidade do Direito13.

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1 O Tema nº 1.076 do STJ pode ser consultado em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1076&cod_tema_final=1076. Acesso em 14 dez. 2022.

2 Os destaques em questão estão disponíveis em notícia trazida pelo Migalhas: MIGALHAS. Corte Especial deve analisar casos de honorários fixados pelo CPC. Disponível em https://www.migalhas.com.br/quentes/378551/stj-3-turma-afeta-a-corte-especial-casos-de-honorarios-milionarios. Acesso em 14 dez. 2022.

3 CONJUR. Afetação de casos sobre honorários é para uniformizar distinções, diz ministro. Acesso em 15 dez. 2022.

4 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes. Incidente de resolução de demandas repetitivas. Sistematização, análise e interpretação do novo instituto processual. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 97.

5 FUX, Luiz; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes; FUX, Rodrigo. Sistema brasileiro de precedentes: principais características e desafios. Revista Eletrônica de Direito Processual, vol. 23, n. 3, set.-dez. 2022, p. 227.

6 FUX, Luiz; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes; FUX, Rodrigo. Op. Cit., p. 227-228.

7 WELSCH, Gisele. A autoridade dos precedentes judiciais e a unidade do direito: uma análise comparada Brasil-Alemanha (II). Revista de Processo, vol. 13, mar. 2021, versão eletrônica.

8 No common law, os precedentes judiciais são dotados de força vinculante e figuram como a mais importante fonte do direito: pelo princípio da stare decisis, a decisão anterior cria o direito. Nessa órbita, os juízes do common law têm o dever funcional de seguir os precedentes de casos análogos, não bastando que os utilize como relevantes subsídios persuasivos. (TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 13).

9 WELSCH, Gisele. Op. Cit.

10 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro Mendes. Op. Cit., p. 118.

11 PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 212.

12 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. I. 10.ed. São Paulo: Malheiros, 2020, p. 5260.

13 WELSCH, Gisele Mazzoni. Precedentes Judiciais e Unidade do Direito. Análise comparada Brasil-Alemanha. Londrina, PR: Thoth, 2021. p. 66.

Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/elas-no-processo/378926/os-honorarios-advocaticios-de-elevado-valor-no-cpc-de-2015