O Prazo Decadencial na Revisão da “Vida Toda”

Por Prof. Diego Henrique Schuster dezembro 19, 2022

 

Não, sem dúvidas, expressões como “a cada um o que é seu”, “o direito não socorre aos que dormem”, enfim, constituem standars retóricos obsoletos e que não deveriam ser utilizados em matéria previdenciária.

Com relação à revisão da “vida toda”, não posso aceitar que a decadência seja aplicada de modo acrítico, com Cronos devorando seus filhos à vontade. É verdade que os temas até agora julgados pelas instâncias superiores (313/STF, 966 e 975/STJ, para citar apenas estes) não deixam espaço para a “actio nata”, quer dizer, mesmo que a tese tenha se tornado juridicamente viável somente agora, com o selo jurídico do STF. Os debates travados durante o julgamento do Tema 1102 sugerem que tudo é aproximado, negociação entre querer e poder, quer dizer, a decadência fez parte do “pacote”, na perspectiva dos impactos econômicos da decisão e sua aceitação – embora não se concorde que as consequências de uma decisão possam determinar o próprio Direito.

No entanto, aqui, precisamos considerar a diferença entre tese e uma simples (re)interpretação da lei. É possível verificar que a tese chancelada pelo Supremo Tribunal Federal é fruto de uma construção. Neste nível, se somente agora se possui certeza sobre tal possibilidade, não é razoável admitir a fluência do prazo extintivo em momento anterior.

Por outo lado, admitindo-se que a revisão decorre de expressa previsão legal, igualmente, não se poderia cogitar a incidência de prazo decadencial, como acontece nas revisões do IRSM, do “buraco negro”, etc. onde uma lei, após anos, diz que a autarquia tem o dever de recompor os valores, pagando as diferenças devidas… Aqui se pode colocar a tese da “vida toda” dentro do grupo das revisões de direito, mas a partir do rótulo de “revisão compulsória”. A mera retificação do PBC perante o INSS não pode ser compreendida como revisão do ato de concessão, como já se decidiu sobre os salários-de-contribuição[1]. É cediço que não se aplicam às revisões de reajustamento os prazos de decadência de que tratam os arts. 103 e 103-A da Lei nº 8.213, de 1991 (IN INSS/PRES 77/2015, art. 565).

Por fim, e não menos importante, mas quando se tem uma lei declarada (in)constitucional, importante perceber a situação numa relação jurídica de trato continuado, quer dizer, preocupa a questão do tratamento igualitário – exemplos não faltam em matéria tributária. Seria o caso de focarmos nos prejuízos que se renovam a cada nova mensalidade de um benefício concedido sem observância da regra mais benéfica ao segurado. Trata-se, pois, de dar uma nova perspectiva à relação jurídica de trato sucessivo, não necessariamente para fins rescisórios, mas para fins de contagem do prazo decadencial.

No Tema 313/STF, a questão da igualdade foi resolvida fixando-se a seguinte tese: “II – Aplica-se o prazo decadencial de dez anos para a revisão de benefícios concedidos, inclusive os anteriores ao advento da Medida Provisória 1.523/1997, hipótese em que a contagem do prazo deve iniciar-se em 1º de agosto de 1997.” Ainda, restou estabelecido, na própria ementa do julgado, que o direito à previdência social não se sujeita a prazo decadencial, sendo a concessão do benefício propriamente dito o exercício deste direito fundamental:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PREVIDENCIÁRIO. REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL (RGPS). REVISÃO DO ATO DE CONCESSÃO DE BENEFÍCIO. DECADÊNCIA. 1. O direito à previdência social constitui direito fundamental e, uma vez implementados os pressupostos de sua aquisição, não deve ser afetado pelo decurso do tempo. Como consequência, inexiste prazo decadencial para a concessão inicial do benefício previdenciário. 2. É legítima, todavia, a instituição de prazo decadencial de dez anos para a revisão de benefício já concedido, com fundamento no princípio da segurança jurídica, no interesse em evitar a eternização dos litígios e na busca de equilíbrio financeiro e atuarial para o sistema previdenciário. 3. O prazo decadencial de dez anos, instituído pela Medida Provisória 1.523, de 28.06.1997, tem como termo inicial o dia 1º de agosto de 1997, por força de disposição nela expressamente prevista. Tal regra incide, inclusive, sobre benefícios concedidos anteriormente, sem que isso importe em retroatividade vedada pela Constituição. 4. Inexiste direito adquirido a regime jurídico não sujeito a decadência. 5. Recurso extraordinário conhecido e provido.”

A regra de direito utilizada como fundamento (ratio decidendi) aponta para as súmulas do STF e STJ que tratam da incidência da prescrição quinquenal de parcelas vencidas no âmbito previdenciário:

“Súmula 443/STF: “a prescrição das prestações anteriores ao período previsto em lei não ocorre quando não tiver sido negado, antes daquele prazo, o próprio direito reclamado, ou a situação jurídica de que ele resulta”.

“Súmula 85/STJ: “Nas relações jurídicas de trato sucessivo em que a Fazenda Pública figure como devedora, quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do quinquênio anterior à propositura da ação”.

Para a compatibilização da nova situação normativa, a melhor solução é admitir-se que o direito nasceu com a decisão do Supremo Tribunal Federal, tomando-se o trânsito em julgado dessa decisão como termo inicial do prazo decadencial. Se é razoável admitir que a integralização do direito material só ocorre após o trânsito em julgado em relação a uma ação trabalhista (Tema 1157), o que dirá para uma tese que dependia da jurisprudência previdenciária e, em última análise, da chancela do STF para se tornar juridicamente viável.

Deve ter ficado claro, a incidência da decadência condena o beneficiário a suportar – sozinho – todo o ônus da demora – que não é sua! Reconhecer a decadência, quando não havia decisão final do Poder Judiciário (o reconhecimento de tal direito), inverte totalmente a finalidade da norma. Não se aperfeiçoa o suporte fático previsto no art. 103 da Lei nº 8.213/1991, se a administração não cumpre o dever de decidir o pedido de revisão do benefício [2], logo, o mesmo deveria valer aqui. Não? Note-se que tal direito ainda não é reconhecido pelo INSS, vale dizer: na via administrativa!

Como já se viu, escrevo para tentar entender, escrevo porque não me conformo com certas coisas, enfim, simplesmente escrevo, mas sei que, a julgar pelo que já decidiram os tribunais superiores, a decadência vai incidir também na revisão da “vida toda”. Em respeito ao sistema de precedentes, que cobra coerência e integridade do Direito (CPC, art. 926), a decadência deverá incidir na RTV. Quando se diz “isso não é possível” já antevemos o possível!

______________________________________

Bah1: PREVIDENCIÁRIO. REVISÃO. DECADÊNCIA. INOCORRÊNCIA. RETIFICAÇÃO DE SALÁRIO DE CONTRIBUIÇÃO. 1. Acompanhando o Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.309.529 PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, 1ª Seção, julgado em 28/11/2012, DJe 04/06/2013), esta Turma consolidou o entendimento de que incide o prazo decadencial para os benefícios concedidos antes da MP 1.523-9/1997. 2. A mera retificação do salário de contribuição perante o INSS não pode ser compreendida como revisão do ato de concessão, fato que afasta a incidência da decadência no caso concreto. (TRF4, AC 0013546-27.2015.404.9999, SEXTA TURMA, Relator JOÃO BATISTA PINTO SILVEIRA, D.E. 20/03/2017, grifo nosso).

Bah2: É impensável a aplicação da decadência no caso concreto, na pendência de uma definição por parte do INSS. Deve-se, aqui, reconhecer a inércia do INSS: PREVIDENCIÁRIO. DECADÊNCIA. REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. EXERCÍCIO DO DIREITO À REVISÃO DO ATO DE CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 103 DA LEI Nº 8.213/1991. AUSÊNCIA DE DECISÃO ADMINISTRATIVA. 1. O prazo de decadência previsto no art. 103 da Lei nº 8.213/1991 aplica-se somente à revisão de benefício já concedido, conforme a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 626.489 (Tema nº 313). 2. O entendimento de que o prazo decadencial não é interrompido pela apresentação de pedido de revisão no âmbito administrativo não se mostra adequado à moldura legal do instituto dada pelo art. 103 da Lei nº 8.213/1991. 3. Se o segurado provoca a administração para obter a revisão do ato de concessão do benefício, há o exercício do direito substancial que afasta a decadência, caso a data do requerimento seja anterior ao prazo de dez anos, contado do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento da primeira prestação. 4. Caso o pedido administrativo seja indeferido, somente resta a possibilidade de obter a revisão do benefício na via judicial, incidindo nessa hipótese a parte final do art. 103 da Lei nº 8.213/1991, que determina a contagem do prazo de decadência a partir da data de notificação da decisão indeferitória definitiva. 5. Não se aperfeiçoa o suporte fático previsto no art. 103 da Lei nº 8.213/1991, se a administração não cumpre o dever de decidir o pedido de revisão do benefício. 6. Reconhecer a decadência, quando não houve decisão final de indeferimento do pedido de revisão do ato de concessão do benefício, inverte totalmente a finalidade da norma, já que a inércia da administração só lhe traria efeitos favoráveis. (TRF4, AC 5000977-14.2019.4.04.7138, QUINTA TURMA, Relator OSNI CARDOSO FILHO, juntado aos autos em 06/07/2020). (realcei).