Um dos Inúmeros Aspectos da Reforma do Código Civil

Voltaire Marenzi

Advogado e Professor

Uma questão que retomo como uma vexata quaestio, vale dizer, um tema muito polêmico ainda objeto de discussão na reforma do nosso atual Código Civil, embora já decidida pela Corte Constitucional, por maioria de votos, “concluiu que normas estaduais, teriam violado competência privativa da União para legislar em matéria de direito civil, mormente em direito securitário”.[1]

O tema está hoje na berlinda quando escrevi sobre o ensaio de uma honrada colega que faz parte integrante da comissão de reforma do Código Civil, que também comentei alhures, recentemente. Segundo seus comentários o artigo 757 do Código Civil, que define o contrato de seguros “ foi mantido integralmente, mas foram criados dois parágrafos que determinam que  somente pode ser parte no contrato de seguro, como segurador,  entidade para tal fim legalmente autorizada; e, todas as entidades  organizadas para proteção de riscos de danos ou de pessoas, deverão  ser autorizadas previamente pelo órgão regulador e, atenderão às exigências técnicas, administrativas, jurídicas e financeiras aplicáveis ao segurador”.

Acrescentou, ela,  por fim que “esses parágrafos cumprem o papel de ressaltar que entidades como associações e cooperativas não são seguradores, não podem atuar como tal, salvo as cooperativas com atividades nas áreas de saúde e rural, conforme expressamente previsto no Decreto-Lei n. 73, de 1966”.

Segundo entendimento da douta colega, “na atualidade, inúmeras entidades associativas se organizaram para exercer a chamada proteção veicular e já se expandem para riscos de vida e acidentes pessoais, residenciais e outros. São entidades que não realizam cálculos atuariais, não criam e nem administram fundos mutuais, não fazem reservas técnicas, não recolhem tributos e tão pouco se submetem à regulação do Estado”.

Todavia, ouso discordar da ilustrada colega que fez suas considerações sobre a matéria de uma maneira tangenciada, a meu sentir, sob o setor de seguros. Penso que o tema deve merecer um estudo mais dilargado, sobretudo no âmbito das associações em um sentido lato.

A obra consagrada do grande mestre português, J.C. Moitinho de Almeida na parte introdutória, diz:

“Na Antiguidade dominaram as instituições de assistência mútua, praticando-se alguns contratos em que a assunção do risco não dispunha de autonomia”.[2]

Exemplifica o mencionado autor como era “o caso do nauticum phoenus romano, em que o proprietário de um navio ou um armador recebia de empréstimo, geralmente de um banqueiro, certa quantia igual ao valor das mercadorias transportadas, estipulando-se que, na hipótese de o navio chegar a salvo ao seu destino, devia ser restituído o capital mutuado com um acréscimo que chegava a 15%”.[3]

Na Idade Média, prossegue o escritor português, também subsistiram essas associações, quando no princípio do século XVI, apareceram os primeiros contratos de seguro.[4]

Fiz esses registros quando escrevi sobre as Associações de Socorro Mútua, em 16 de maio de 2023.

Por outra banda, como dissertei  algures, é de se registrar e, aliás, consta no próprio corpo da decisão proferida pela Corte Constitucional o enunciado sob número 185 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, no que concerne à interpretação atribuída ao art.757 do Código Civil/2002, que determina “a disciplina dos seguros do Código Civil e as normas da previdência privada que impõem a contratação exclusivamente por meio de entidades legalmente autorizadas, porém não impedem a formação de grupos restritos de ajuda mútua, caracterizados pela autogestão”. Grifo meu.

De fato, o tema é delicado e de uma certa complexidade no que concerne o funcionamento de cooperativas e associações. Deveras. Trata-se de norma constitucional vigente nos incisos XVII e XVIII, do artigo 5º da Constituição Federal que diz ser plena a criação de associação para fins lícitos e que junto com as cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento, respectivamente.

De outro giro, o saudoso doutrinador gaúcho Ovídio A. Baptista da Silva, se valendo do grande jurista alemão Karl Larenz ao tratar de “direitos de cooperação, ensinava que eles se acham muito próximos dos direitos potestativos. Distinguem-se destes pelo fato de não serem direitos apenas no interesse próprio, mas direitos orgânicos, na medida em que possibilitam, não formação exclusiva de uma relação jurídica para o titular, porém sua cooperação para a formação de uma vontade coletiva. Eles estão sujeitos a limitações derivadas do dever de fidelidade do associado perante os demais, bem como perante a associação ou corporação”.[5]

Lanço, aqui, algumas considerações pertinentes ao tema resultante destes comentários.

Consoante afirmei naquela crônica não pretendo estabelecer um pensamento hermético sobre estas entidades legais, isto é, as associações e as cooperativas.

Talvez, quem sabe, um melhor amadurecimento sobre o tema em pauta.

Até, talvez, a possibilidade daquelas entidades não se encontrarem imbricadas, propriamente, no segmento estanque do Direito dos Seguros, mas, cuja reforma não deve destoar por completo de institutos diversos com assento em sede constitucional.

Por fim. Não advogo em sede de conotação linear em prol de qualquer instituto jurídico que seja determinado pelo legislador competente, mas, que, tampouco, não se desconheça a magnitude de cada em deles com suas respectivas naturezas jurídicas.

Enfim. O Congresso Nacional deve elaborar leis modernas que atendam preceitos em prol da coletividade.

É o que penso, sob censura.

Porto Alegre, 20 de março de 2024.

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[1] Tema quando discorri em 17 de maio de 2023 em sites sobre direito do Seguro, particularmente Segs.

[2] O Contrato de seguro no Direito Português e Comparado. Livraria Sá da Costa Editora. Lisboa, 1ª edição, 1971, página 5.

[3] Idem, página citada.

[4] Ibidem.

[5] O Seguro e as Sociedades Cooperativas. Livraria do Advogado/ Editora, Porto Alegre, 2008, página 84.