O que significa dizer que os juízes devem obedecer a precedentes?
Por Tereza Arruda Alvim
Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.
Ao longo da minha vida, estudando processo civil, sempre fui extremamente favorável a instrumentos que levem a uma maior segurança jurídica, proporcionando concretização do princípio constitucional da isonomia e gerando, portanto, um grau saudável de previsibilidade. Por isso aplaudi, com muita alegria, o sistema de precedentes criado pelo CPC/15.
Não é novidade para ninguém, que durante muito tempo, exatamente para que se pudesse obter aplicação do princípio da isonomia e que se obtivesse dessa forma maior previsibilidade, proibiu-se a interpretação da lei. É conhecida de todos a frase: “o juiz é a boca da lei”. Incrivelmente, essa ficção durou até meados do século XIX.
Mas a história mostrou que a interpretação da lei é inevitável. As sociedades, que antes eram mais simples e divididas em duas classes: uma dominante e outra dominada, tornaram-se complexas, com inúmeros centros de interesse, que fazem pressão e acabam se substituindo no poder. A essa nova realidade, somou-se a pretensão de que o direito disciplinasse a inteireza da vida social. Ocorre que o legislador não foi e não é capaz de acompanhar a dinamicidade da vida, exigindo que o Poder Judiciário cumpra uma função que vai além da mera aplicação automática da lei: exige-se que, em muitas circunstâncias, o Poder Judiciário – e não cada juiz, visto individualmente – crie o direito.
Há algumas décadas, o legislador vem incluindo nos textos de lei conceitos indeterminados e cláusulas gerais, além de dar relevância à jurisprudência e criar oportunidades e instrumentos para que haja uniformização da jurisprudência. Efetivamente, se se reconhece que o juiz cria direito, é evidente que não pode haver tantos direitos quantos juízes existem no país.
Por isso deve ser visto, a meu ver, com bons olhos o sistema de precedentes trazido pelo novo Código. Mas para que ele funcione, é absolutamente imprescindível que se entenda que, da mesma forma que não foi possível, ao longo do tempo, que a lei fosse aplicada de forma automática, também os precedentes, em muitos casos, não poderão sê-lo.
Todos os textos – os da lei e os dos precedentes – reclamam/pedem/exigem interpretação.
Há precedentes concebidos no seio de institutos, cujo objetivo é o de minimizar a litigância de massa. Esses institutos são os Recursos Repetitivos e o IRDR.
Quando um recurso é julgado no sistema dos recursos repetitivos ou quando uma tese é firmada no bojo de um IRDR, redige-se uma tese, que se aplica a todos os casos idênticos.
É recomendável que o uso desses institutos só aconteça quando se tratar de casos ditos binários, isto é, casos que não comportem variação, aqueles cuja resposta será ou um sim ou um não, nunca um: depende..
Por outro lado, um precedente formado no âmbito de um Incidente de Assunção de Competência ou no julgamento de um Recurso Extraordinário (e digo isto porque o acórdão que julga o Recurso Especial ainda não foi transformado em precedente vinculante), embora também gere a redação de uma tese, esta deve ser aplicada com muito mais cuidado. Não se deve jamais entender que o precedente, nesses casos, poderia ser compreendido como abrangido pela própria tese, ou se identificaria com a própria tese. A leitura dos acórdãos nunca é dispensada para que se compreenda o que, realmente, é o precedente e em que consiste, efetivamente, o núcleo vinculante da decisão proferida.
Quando não se trata de uma decisão proferida num caso binário, a tese nada mais é do que uma grosseira simplificação do conteúdo essencial da decisão, e jamais pode ser, ela mesma, a tese, aplicada, sem que o juiz, que é o intérprete do precedente, identifique a sua razão de ser, ratio, e para isso é necessária a leitura atenta do(s) acórdão(s) que deu(deram) origem àquela tese.
É muito importante chamar a atenção, aqui, para o fato de que os recursos extraordinários repetitivos não existem mais, salvo no texto da lei. Isto porque, o regime jurídico da repercussão geral absorveu o procedimento dos repetitivos, já que, sendo julgado um único e primeiro recurso extraordinário não mais se poderá discutir aquele tema no STF. Então, o que acabou acontecendo é que o STF julga casos que poderiam dar origem aos recursos repetitivos… e outros casos também, que não se repetem de forma idêntica no país inteiro. As teses redigidas no primeiro caso têm, evidentemente, um valor diferente das teses redigidas no segundo caso. No segundo caso, é claro que a leitura atenta do acordão que deu origem à tese é absolutamente necessária.
Tome-se como exemplo, a tese fictícia: é do Estado a responsabilidade pela morte de preso ocorrida dentro dos limites do estabelecimento carcerário. É evidente que não se trata de uma situação que se repete de forma idêntica em todos os Estados e cidades do país. Salta aos olhos a necessidade de se ler o acórdão – e de não se confiar piamente na tese…!- e se perceber, por exemplo, que esta responsabilidade ocorre quando a morte do preso decorre da falta de cuidado (culpa – negligência) dos funcionários do Estado, quando se trata, por exemplo, de um caso de suicídio. Analogicamente o precedente pode ser aplicado ao caso de um preso que é envenenado pela comida do local, mas, não a um outro caso em que o preso estivesse, por exemplo, fugindo e ameaçando um carcereiro.
Com isso, o que pretendo dizer, é que os juízes como interpretam uma lei, devem também interpretar as teses, à luz dos acórdãos que lhes deram origem.
A aplicação da tese limita a liberdade do juiz e se dá de forma quase automática quando o recurso julgado pôs fim a um conflito sobre uma questão que se repete de forma idêntica pelo país afora -casos, ditos, binários-, como, por exemplo, saber se determinada cláusula contratual sempre presente em contratos bancários é, ou não é, nula. Ou, ainda, saber se Universidades Públicas podem cobrar matrícula dos estudantes.
Nesses exemplos não há “variações” que levem à necessidade de que se responda à questão. de um modo inseguro, começando por um: depende. Ou a cláusula é nula ou não é; ou se pode cobrar matrícula dos estudantes em universidades públicas ou não se pode. Então se diz, artificialmente, que nesses casos “o que vincula é a tese” e, portanto, a aplicação deste precedente pode acontecer de forma quase automática nos casos que sejam exatamente idênticos. De fato, é só isso que justifica a simplicidade com que o legislador descreveu o procedimento do IRDR ou dos Repetitivos: ambos incompatíveis com a complexidade de se ter que descobrir qual a ratio do precedente aplicado. As teses fixadas de acordo com o regime de IRDR ou de Repetitivos dispensam o intérprete de encontrar a ratio.
No entanto, é evidente que a ratio desses acórdãos também vincula, e que os juízes podem se perguntar, interpretando os acórdãos, se a essência do raciocínio jurídico aplicado ao caso da matrícula se aplica também, por exemplo, à hipótese de se cobrar por cursos de especialização. Assim como juízes interpretarão a decisão sobre a cláusula para indagar se a essência da decisão se aplica a cláusulas semelhantes. Se a cláusula é idêntica, a liberdade desaparece.
Portanto, aplicação de precedentes vinculantes depende fundamentalmente não só da existência do próprio precedente, mas da interpretação do juiz que vai aplicá-lo. Aqui cabe dizer, por exemplo, que se os fatos, subjacentes à causa que vai julgar, são diferentes daqueles que deram origem ao precedente e entre eles não há analogia, o precedente não vai ser “aplicado”.
Isso é o que vem sendo chamado desnecessariamente por uma expressão em língua inglesa: distinguishing. Esta operação mental não é, nem nunca foi, novidade do direito brasileiro: não se aplica a lei ao caso concreto se os fatos existentes não são exatamente os mesmos descritos pelo legislador. Embora à primeira vista se pudesse ter a impressão de que eram. O mesmo acontece com a decisão com base em precedente: não é a hipótese descrita na lei, mas é o caso prático que deu base ao precedente!
Assim, os precedentes vinculantes não mataram a atividade interpretativa do juiz.
Ela pode ficar, sim, bastante reduzida, quando se trata de um precedente proferido para resolver casos de massa, que são absolutamente idênticos. Nesse caso, a tese vem a ser um resumo da parte decisória do acórdão que deve, sim, aplicar-se a casos iguais!
Mas quando a aplicação do precedente se faz por analogia, esta operação que consiste em identificar as semelhanças e diferenças é feita pelo juiz ou pelo Tribunal que aplicam o precedente, tanto é assim que a eles cabe afirmar quais fatos são suficientemente diferentes para que o precedente não incida ou quais fatos do caso concreto exigem a aplicação daquele precedente.
O que se quer aqui dizer, é que quem diz se determinada ratio se aplica ou não se aplica é o juiz que julga caso concreto!
A única hipótese em que o Tribunal que editou precedente é quem decide se o precedente deve ser aplicado é aquela em que o caso é binário e se repete de modo idêntico pelo país afora.
O caso que consta da tese (ou o caso que deve constar da tese) é uma hipótese específica de aplicação da ratio. Neste caso, o juiz que vai julgar a causa não tem mesmo liberdade. Ou seja, o juiz não pode, por exemplo, (caso haja um precedente neste sentido) decidir que é constitucional cobrar-se matrícula em universidade pública. Mas poderia, por exemplo, entender que universidades públicas poderiam cobrar por cursos de extensão.
É oportuno, aqui, um comentário a respeito de como as teses devem ser redigidas. Estas não devem, de forma alguma, ser abstratas e se afastarem demasiadamente do caso concreto que lhes deu origem. Não se deve, no nosso entender, ter a pretensão de engessar uma ratio dentro dos estreitos limites de uma tese de duas ou três linhas. A tese devem ser o resultado do julgamento e é altamente desejável que faça menção específica ao caso.
É importante que se frise, então, que o sistema de precedentes não desvaloriza o juiz, por que não lhe retira a capacidade de interpretar o precedente. Por outro lado, trata-se de um sistema que decorre da consciência de que o Judiciário participa da construção do próprio direito, o que significa, indiretamente, reconhecer a relevância do labor dos magistrados!
Fonte: Migalhas