Jurisprudência do STJ sobre planos de saúde

Gisele Leite

Professora universitária aposentada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Presidente da Seccional RJ da ABRADE. Pesquisadora-chefe do INPJ. Trinta e sete obras jurídicas publicadas. Articulista e colunistas dos principais sites jurídicos.

 

Recentemente, nosso país foi tomado por uma discussão que afeta diretamente o bem jurídico chamado vida, saúde e bem-estar e que  atinge as pessoas e suas famílias, é o cancelamento unilateral de contratos de planos de saúde. E, que poderá causar não apenas óbitos como também lesões irreversíveis com grave sofrimento humano.

Há muitas denúncias sobre a prática abusiva no encerramento unilateral, de milhares de contratos, prejudicado especialmente idosos, pessoas portadoras de necessidades especiais tais como os autistas, o que acarretou a notificação de vinte operadoras de planos de saúde pelo governo federal, e, ainda, propiciou a instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados.

A seu turno, as operadoras alegam francas dificuldades decorrentes do elevado aumento de custos de cobertura e do número de fraudes e sinistros, tanto quee anunciaram um acordo para suspender temporariamente o cancelamento dos planos.

Diariamente, chegam demandas sobre a rescisão unilateral dos planos de saúde aportam no Judiciário e as controvérsias pairam sobre a legalidade, os requisitos e os efeitos da referida medida.

No STJ já foram fixados diversos precedentes relevantes sobre o tema, tanto com relação aos planos individuais como os coletivos e familiares, onde há adesão direta dos particulares e naqueles onde existe a intermediação da contratação, normalmente pelo empregador ou entidade de classe.

Quanto aos planos individuais e familiares, a possível rescisão unilateral pela operadora está ligada algum descumprimento contratual por parte do beneficiário. E, a Lei 9.656/1998, em seu artigo 13, parágrafo único, inciso II proíbe expressamente a suspensão ou rescisão unilateral do plano de saúde individual, exceto se houver fraude

ou não pagamento da mensalidade por mais de sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato. E, ainda, desde que seja o consumidor devidamente notificado até o quinquagésimo dia da inadimplência.

Conforme indicado no AREsp 1.721.518, essa limitação à rescisão unilateral dos planos individuais também alcança as modalidades familiares de contratação.

Por outro lado, o STJ entende que, por falta de previsão legal, o impedimento à rescisão unilateral e imotivada de contratos não se aplica aos planos coletivos, tendo incidência, portanto, apenas nos tipos individuais e familiares (REsp 1.346.495). De toda forma, o cancelamento imotivado do contrato coletivo só pode ocorrer após a vigência mínima de doze meses e mediante a prévia notificação dos usuários, com antecedência mínima de 60 dias (REsp 1.698.571).

Somente nas hipóteses autorizadas em lei para o cancelamento por inadimplência que a rescisão unilateral independe de ação judicial, conforme já decidiu pela Quarta Turma no REsp 957.900, mas é necessária a comunicação prévia ao titular do plano de saúde.  Apesar de que a legislação não exija expressamente a notificação pessoal do interessado, será necessária ao menos a comunicação via postal, com aviso de recebimento (AR) direcionada ao endereço do contratante. (REsp 1.995.100).

Em outro processo, contudo, os ministros da Terceira Turma do STJ consideraram contraditório o comportamento da operadora ao renegociar a dívida do titular do plano de saúde, após notificá-lo sobre a rescisão. O que levou o colegiado a determinar que a operadora mantivesse o referido plano do beneficiário.

Aliás, a conduta de renegociar a dívida do titular do plano de saúde e, após notificá-lo da rescisão contratual receber o pagamento da mensalidade seguinte, configura um comportamento contraditório da operadora, sendo ofensivo à boa-fé objetiva, por ser incompatível com o afã de extinguir o vínculo contratual, criando para o consumidor, a legítima expectativa de sua manutenção, afirmou a Ministra Nancy Andrighi.

Como Tema Repetitivo 1.082, a Segunda Seção estabeleceu a tese de que, ainda que a operadora exerça regularmente o direito à rescisão de plano coletivo, ela deve garantir a continuidade da cobertura ao beneficiário que esteja internado ou em tratamento, até a efetiva alta, desde que o titular também mantenha o pagamento das mensalidades (REsp 1.842.751).

Embora a tese tenha sido voltada para os casos de planos de saúde coletivos, o STJ já aplicou o mesmo entendimento aos contratos individuais e familiares (como no REsp 1.981.744 e no REsp 2.073.352, ambos da Quarta Turma).

Essa ideia de manutenção da cobertura do plano de saúde rescindido ao beneficiário em tratamento também foi aplicada pelo STJ à hipótese de beneficiária gestante. No AREsp  2.323.915, decidiu-se que, durante o período de gestação, o cancelamento do plano coletivo representaria prática abusiva, com possibilidade de risco imediato à vida e à saúde tanto da mãe quanto do bebê.

Há outra limitação à rescisão unilateral do plano coletivo nos contratos empresariais com menos de trinta beneficiários, quando a rescisão deverá ser devidamente justificada.

E, no EREsp 1.692.594, o Ministro Marco Aurélio Bellizze comentou que os planos desse tipo são considerados mais vulneráveis do que os contratos coletivos tradicionais, pois os contratantes têm menor poder de negociação com a operadora.

Em razão disso, apontou o relator, é que a rescisão, apesar de ser possível, deve ser fundamentada, como forma de se evitar os abusos.  Porém, o tema deverá voltar a ser debatido pela Segunda Seção do STJ, há recurso repetitivo destinado a definir a validade da cláusula contratual que prevê a rescisão unilateral, independentemente de motivação, dos planos de saúde com menos de trinta beneficiário (Tema 1.047). In: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/09062024-Saude-cancelada-a-jurisprudencia-do-STJ-sobre-rescisao-unilateral-de-planos-de-assistencia-medica.aspx

Aliás, quando ocorrer o cancelamento de plano coletivo por adesão, o STJ considera que o beneficiário tem legitimidade para questionar a rescisão unilateral feita pela operadora (REsp 1.705;311). A empresa prestadora do plano de saúde, por outro viés, é parte legítima para responder à ação de indenização promovida pelo beneficiário em razão de contrato coletivo rescindido (AREsp 239.437).

O beneficiário, de acordo com STJ, também tem direito à migração para plano individual ou familiar, casos sejam comercializados pela operadora. E, nesses casos, a transferência deve ser realizada sem o cumprimento de novos prazos de carência, desde que o beneficiário aceite se submeter às novas regras e aos custos da adesão ao novo plano (REsp 1.884.465).

Em outra decisão do STJ, a Terceira Turma destacou que não é possível obrigar a operadora que comercializa somente planos coletivos a oferecer plano individual aos beneficiários de contrato cancelado, ainda que essas pessoas sejam idosas, e, portanto hipervulneráveis.

Em nota a ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar informa que a assistência para beneficiário internado tem que ser mantida.

É proibida a rescisão ou suspensão unilateral do contrato por iniciativa da operadora, qualquer que seja o motivo, durante a internação de titular ou de dependente, nos planos de saúde individual ou familiar. Até a alta hospitalar, a operadora deverá arcar com todo o atendimento.

Importante esclarecer que, no caso dos planos coletivos, é lícita a rescisão de contrato, por parte da operadora, com beneficiários em tratamento. No entanto, se houver a rescisão do contrato de plano coletivo – por qualquer motivo – e existir algum beneficiário ou dependente em internação, a operadora deverá arcar com todo o atendimento até a alta hospitalar.

Da mesma maneira os procedimentos autorizados na vigência do contrato deverão ser cobertos pela operadora, uma vez que foram solicitadas quando o vínculo do beneficiário com o plano ainda estava ativo.

Em qualquer dos casos, seja por exclusão pontual ou por rescisão/cancelamento de contrato, os beneficiários devem ser previamente notificados sobre sua exclusão ou sobre a rescisão do contrato, bem como sobre seu direito à portabilidade de carências.  In: https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/noticias/beneficiario/nota-da-ans-sobre-cancelamento-e-rescisao-de-contratos#:~:text=%C3%89%20proibida%20a%20rescis%C3%A3o%20ou,arcar%20com%20todo%20o%20atendimento. Acesso em 10.6.2024.

A Resolução 509, de 2022, da ANS, estabelece no Anexo I as condições de rescisão pela operadora:

“A operadora poderá rescindir o contrato desde que haja previsão contratual e que valha para todos os associados. O beneficiário poderá ser excluído individualmente pela operadora em caso de fraude, perda de vínculo com a pessoa jurídica contratante, ou por não pagamento. O contrato coletivo somente pode ser rescindido imotivadamente após a vigência do período de doze meses. A notificação deve ser feita com 60 dias de antecedência., mas sendo os beneficiários destinatários finais dos serviços e estando presente vulnerabilidade, aplicam-se à hipótese as normas consumeristas”.

Nesse cenário, ao cancelar imotivadamente o plano de saúde coletivo sem justo motivo e sem aviso prévio coloca o consumidor em clara desvantagem, ferindo princípio basilar de qualquer relação contratual – a boa-fé.

Em resumo, o cancelamento unilateral dos planos de saúde coletivos pela operadora sem motivo válido é uma questão que merece atenção e ação imediata por parte das autoridades reguladoras e da sociedade como um todo.