A Possível Solidariedade do Estipulante com o Segurador no Pagamento da Indenização

Voltaire Marenzi.

 

Advogado e Professor.

 

 

Examinando recentemente o tema seguro de vida em grupo no que tange, entre outras questões, mormente relacionadas ao instituto legal da solidariedade, subsumida na legislação substantiva[1], no qual o estipulante neste tipo contratual, isto é, em matéria securitária, dependendo da casuística envolvida pode, excepcionalmente, ter responsabilidade juntamente com à corretora de seguros pelo pagamento da indenização securitária, em hipóteses circunstanciais tais como de mau cumprimento das obrigações contratuais, ou de criação nos segurados de legítima expectativa de serem eles os responsáveis por esse pagamento  – teoria da aparência -, sobretudo se integrarem o mesmo grupo econômico.

Agora, recentemente, isto é, em data de 15/08/23, através do que foi decidido no Recurso Especial sob número 2.080.290/MG, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cuevas, se travou uma discussão pertinente a seguros  de danos, em veículo automotor, pois o tema estava vinculado a uma associação de proteção veicular, que  atuava  na  condição  de  estipulante  de  seguro  automotivo  coletivo, no qual se entendeu possuir, ele, legitimidade passiva ad causam, podendo também ser responsabilizado solidariamente com o ente segurador, em ação que se buscava o pagamento da indenização securitária pelos segurados.

No caso, em tela se tratou de uma associação de automóveis, que alegou ter agido como mera intermediária na formalização da apólice coletiva, de modo que não poderia figurar no polo passivo da lide proposta pelo segurado.

Nesta direção, ela, estipulante do seguro, alegou em sua defesa que não poderia ser condenada solidariamente, visto que a responsabilidade de pagar os prejuízos do sinistro decorreria exclusivamente da seguradora.

Em verdade, o estipulante pode ser tanto uma pessoa física, quanto jurídica, e deverá intermediar a contratação do seguro para esse grupo, diretamente com a seguradora. Ele está sempre presente nas negociações da apólice de seguro quando este é coletivo. O seguro coletivo é aquele que possui um único contrato direcionado a vários usuários. É o que acontece por exemplo, para membros de sindicatos, condomínios e associações comerciais.

Porém, a figura do estipulante não está prevista nos dispositivos insertos em nosso Código Civil.[2]

Essa figura legal – o estipulante – está plasmado no artigo 21 do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, que na hierarquia legal é uma Lei Complementar, embora esteja há muito tempo rota e desgastada, necessitando, destarte, de uma ampla reforma tanto no que concerne ao mesmo patamar constitucional ou, se for o caso, implementada em um projeto de lei (PLC 29/2017) de autoria do IBDS.[3]

Impende sublinhar, como dito alhures, que tal procedimento se faz premente com a atual reforma de nosso Código Civil, já que existe uma Comissão constituída para tal mister.

Transcrevo, no ponto, o que consta no recurso especial acima mencionado.[4]

“1. A discussão dos autos está em saber se associação de proteção veicular, que atuava na condição de estipulante de seguro automotivo coletivo, possui legitimidade passiva ad causam, podendo ser responsabilizada solidariamente com o ente segurador, em ação que busca o pagamento da indenização securitária.

  1. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o estipulante, em regra, não é o responsável pelo pagamento da indenização securitária, visto que atua apenas como interveniente, na condição de mandatário do segurado, agilizando o procedimento de contratação do seguro – artigos 21, § 2º, do Decreto-Lei nº 73/1966 e 801, § 1º, do Código Civil.
  2. É possível, excepcionalmente, atribuir ao estipulante a responsabilidade pelo pagamento da indenização securitária, em solidariedade com o ente segurador, como nas hipóteses de mau cumprimento de suas obrigações contratuais ou de criação nos segurados de legítima expectativa de ser ele o responsável por esse pagamento.
  3. Na hipótese a legitimidade passiva ad causam e a responsabilização solidária da recorrente decorrem tanto do descumprimento de suas obrigações como estipulante da apólice coletiva (já que prejudicou a autora no que tange ao início de vigência do contrato de seguro) quanto da sua atividade de proteção veicular, expressa em seu regulamento associativo.
  4. A responsabilidade da entidade associativa de socorro mútuo em garantir sinistros de seus associados não é afastada por ela também atuar como estipulante em contrato de seguro em grupo, de modo que deve observar seu regulamento e o objetivo que fundamenta sua criação, no caso, a proteção veicular.
  5. Recurso especial não provido.

Aqui, faço uma pequena observação. O Supremo Tribunal Federal não recepcionou as associações mútuas, posto que segundo seu entendimento essas entidades assistenciais não cumprem o disposto em nosso ordenamento jurídico.[5] Vide o que escrevi algures sobre a matéria, que me abstenho de comentar ao azo, por não se cuidar do tema ora proposto neste artigo.[6]

Porém, novamente, retornando ao tema objeto destes comentários, notadamente em relação a figura do estipulante nos contratos de seguro de vida em grupo, Pedro Alvim assim assinala, como consta também no corpo do voto do ministro Relator, verbis:

”  Nesses  seguros,  além  do  segurador  que  assume  a responsabilidade  dos  riscos  previstos  no  contrato,  aparecem  os  seguintes interessados: O estipulante, que é a pessoa física ou jurídica que se responsabiliza  perante  o  segurador  pelo  pagamento  do  prêmio  e  o cumprimento  das  cláusulas  contratuais;  os  segurados  que  são  as pessoas sujeitas ao risco e a favor de quem se faz a cobertura do seguro; finalmente, os beneficiários que são as pessoas indicadas pelos segurados para receber o pagamento do seguro, no caso de morte.

Ademais ainda está dito e consta do voto do ilustrado Ministro Relator:

“O legislador aprovou o art. 801 [do Código Civil]. O seguro de pessoas pode ser estipulado em proveito de grupo que, de qualquer modo, se vincule ao estipulante, que não representa o segurador perante o grupo segurado.  É ele o único responsável, para com o segurador, pelo cumprimento de todas as obrigações contratuais.  A modificação da apólice em vigor dependerá da anuência expressa de segurados, que representem três quartos do grupo. Ficou explícito no § 1º do dispositivo legal em exame que o estipulante não é mandatário do segurador.  Esclarece a justificação do Professor Comparato que não representa também o segurado. É o único responsável, para com o segurador, do cumprimento de todas as obrigações contratuais. Exerce um papel independente das demais partes que figuram no contrato, onde assume todas as obrigações contratuais perante o segurador, sobretudo o pagamento do prêmio recolhido dos segurados”. ALVIM, Pedro. O Seguro e o Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, págs. 199 e 202 Grifo.

Já na primeira edição da obra “O Contrato de Seguro” que tive a honra da dedicatória do saudoso amigo e ilustre jurisconsulto da área securitária, mais se discorreu sobre a matéria em foco:

“Nos seguros facultativos o estipulante assume a posição de mandatário. Estes seguros são hoje muito divulgados, tais como os de acidentes pessoais e de vida, celebrados sob a forma coletiva, por entidades como clubes, associações etc. Congregam uma comunidade interessada na cobertura. O segurado adere ao contrato coletivo, manifestando sua vontade, porém, o seguro é o estipulante, como mandatário de todos.

Os direitos e obrigações do estipulante, ou melhor, os poderes de seu mandato são estabelecidos para cada ramo de seguro”.[7] Grifei

Em que pese o brilho de outros votos citados no corpo do acórdão em exame, aliás, em plena sintonia com a matéria regente, não acho oportuno em sede de recurso especial, data vênia, a citação de Resoluções e Circulares da Susep para dar maior sustentação ao voto proferido.

Assim, venia concessa, tenho escrito em relação ao tema em pauta:

“Ademais, salvantes exceções o Judiciário à mingua de maiores considerações não dá guarida ao consumidor e até protege essas instituições securitárias com abono absoluto ao acatar em seus julgados Resoluções e Circulares que gravitam em nosso ordenamento jurídico.

Pergunto: Será que o Recurso Especial que deveria enfrentar em tese somente a Questão Federal é observado? Claro, que não!

Recursos repetitivos são levados em consideração tanto no que tange ao seguro de vida, rectius, de pessoas, que esteiam suas ementas lastreadas em normas de hierarquia inferior à lei ordinária.[8]

Em artigo em coautoria com meu ilustrado colega Paulo Henrique Cremoneze, se disse:

“Mesmo quando se estuda o conteúdo das normas, o que se busca é sua Autoridade. A norma superior condiciona a inferior por essa relação. Logo, é correto dizer que a norma inferior só existe porque a superior lhe determina ou autoriza existência. A norma superior é fundamento de validade da norma inferior. E é exatamente aí que o trato dos princípios ganha especial dimensão”.

E mais, foi dito:

“Mudanças de qualquer tipo que não seguem a pauta constitucional e não observam rigorosamente o prumo do princípio da hierarquia das normas, correm o sério risco de judicialização.

E com a judicialização o selo da insegurança jurídica algo que embota o negócio de seguro, marca-o como signo da desconfiança e muito prejudica seu desenvolvimento. Ajuda, por fim, a aumentar o ranço ideológico que existe – de forma injusta, aliás – em relação a alguns dos seus atores.”[9]

Por fim. É imperiosa a constatação de votos onde se realce a importante figura em sede de direito securitário do estipulante e até mesmo que ele seja, futuramente, previsto às claras em um novo arcabouço que, certamente, há de vir com a preconizada Reforma de nosso Código Civil, fazendo, dessarte, tábula rasa a adoção de normas inferiores elencadas na hierarquia constitucional para o qual ficou veementemente assentada a competência exclusiva do Superior Tribunal de Justiça, vale dizer, “a demonstração da relevância das questões de direito federal infraconstitucional, discutidas no caso, nos termos da lei”.[10]

É o que penso, s.m.j.

 

Porto Alegre, 3 de setembro de 2023.

 

 

[1] Artigo 264 do Código Civil. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda.

[2] Não se trata de contrato de corretagem, artigo 722 do CC, nem tampouco de estipulação a favor de terceiro, artigo 436 do CC.

[3] Dispõe sobre normas de seguro privado; revoga dispositivos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil); e dá outras providências.

[4] Ementa do Resp. 2.080.290/MG, publicado no DJe em 23/08/2023.

[5] Por maioria, vencido o ministro Edson Fachin, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, julgou as Adins sob números 6.753 e 7.151, respectivamente, designado como relator o ministro Gilmar Ferreira Mendes, que concluiu que as normas dos Estados de Goiás e do Rio de Janeiro, teriam violado competência privativa da União para legislar em matéria de direito civil, mormente direito securitário.

[6] Associações de Socorro Mútua.

[7] Obra citada, 1ª edição. Forense. Rio de Janeiro, 1.983, página 211.

[8] Excerto de um último parecer de minha lavra.

[9] Instituto Brasileiro de Direito de Família. Data da publicação; 24/08/2021, idem site Segs.

[10] § 2º, da letra c, do artigo 105 da CF/88.