Utilização de peças usadas ou furtadas no seguro e o dever de informação

Voltaire Marensi

Advogado e Professor

Utilizar peças usadas ou furtadas na reparação de conserto de veículo sinistrado por parte de determinados fornecedores ou até com ciência destes atos de parte de raríssimas Companhias Seguradoras, sem consentimento e até mesmo com desconhecimento dos segurados, podem trazer alguns riscos que comprometem um dos princípios basilares do contrato de seguro, vale dizer, a boa-fé objetiva.

Em verdade, tal assertiva se dessume da leitura do que está escrito em um dos dispositivos do nosso Código Civil, que tem a seguinte redação:

“Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”.[1]

Peças usadas podem ter desgaste oculto[2], que afetam sua funcionalidade e durabilidade. Isso, certamente, resultará em problemas futuros no veículo segurado.

Ademais, a utilização destas peças usadas, poderá não atender aos padrões de segurança necessário, o que pode aumentar consideravelmente os riscos de acidentes.

Nos casos em que são totalmente desconhecidos pelas Seguradoras, ou não, em caso de utilização de peças furtadas, tal prática se rotula como um verdadeiro estelionato, já que a descoberta e a comprovação desta fraude levam com que aquelas façam valer seus direitos no sentido de promover, quer ações penais, quer ações cíveis oriundas da quebra de fidelidade de uma das partes – o fornecedor – no cumprimento de suas obrigações contratuais.

De outro giro, o uso de peças furtadas ou ilegais também poderá resultar em problemas legais para o próprio segurado, proprietário do veículo se estendendo a todos os que já conheciam tais procedimentos.

Além disto, a utilização de peças não originais conduz, inevitavelmente, a uma desvalorização do veículo, uma vez que peças genuínas costumam ser valorizadas por compradores.

Muitas vezes até pode ser difícil determinar a procedência das peças usadas, o que agrava o fato com complicações em questões de garantia e responsabilidade.

Muitas seguradoras têm políticas claras contra o uso de peças usadas e furtadas. Ignorar essas políticas é procedimento que cada dia mais deve ser combatido por todas elas, já que a imagem do contrato de seguro fica arranhada, o que não é bom para o seguro como um todo.

Chama a atenção o que escreveu o saudoso Ministro Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, quando na passagem de obra coletiva, deixou consignado:

“Na doutrina italiana, tentou-se estabelecer uma conciliação entre intenção comum dos contratantes e a boa-fé, o que foi qualificado por Giordano como um sviluppo  integrativodesenvolvimento integrativo – do preceito criado pela autonomia dos contratantes com uma interpretação típica. Explica que se deve avaliar a intenção comum dos contratantes em conformidade com a diligência ordinária que uma pessoa normal poderia e deveria ter para entende-la, considerando-se não apenas as regras comuns de linguagem, mas também os usos do tráfico e o seu espírito objetivo. Deve-se, assim, interpretar as cláusulas, atendendo a um modelo de contratante que se porta em conformidade com a boa-fé”[3].

Há de se colher do que está se expondo neste texto, que existe também a par disto um dever de informação no contrato de seguro no qual há responsabilidade das seguradoras no sentido de fornecer aos seus consumidores, isto é, aos segurados, dados e elementos completos, precisos e relevantes antes da celebração de um contrato de seguro. No próprio direito italiano se introduziu à época uma expressão que ficou conhecida como puntuazione ( pontuação), que no Código Civil daquele país no longínquo ano de 1942, se constitua no fato de determinar a real intenção dos contratantes, nos seguintes termos:

“Na interpretação dos contratos deve-se indagar qual tenha sido a intenção comum das partes e não ficar limitado ao sentido literal das palavras.

Para determinar a intenção comum das partes, deve-se avaliar o comportamento delas, no seu conjunto, mesmo posterior à conclusão do contrato.[4]

Esse dever garante que os clientes compreendam os termos, coberturas, exclusões e outras condições da apólice.

Pois com diz a legislação portuguesa Decreto-Lei número 72/2008 quando trata do modo de prestar informações, artigo 21º, item 5, verbis:

“A proposta de seguro deve conter uma menção comprovativa de que as informações foram dadas a conhecer ao tomador do seguro antes de este se vincular.”

Pois como salienta o grande jurista português António Menezes Cordeiro, “na falta de tal menção, haverá um elemento relevante no sentido de que a informação devida não foi prestada”. Em seguida arremata: O artigo 22º prevê um denominado dever especial de esclarecimento. Trata-se do dever de aconselhamento (Conseil ou Beratung, previsto noutras leis europeias.”[5]

Conquanto haja discussão na doutrina e na jurisprudência acerca de que tipo de apólice específica se deve inserir no dever de informação, notadamente nos seguros de pessoas, penso eu, a sua ofensa deve gerar a invalidade, rectius, anulabilidade do negócio jurídico. Isso porque não parece haver qualquer sentido em se equiparar a ausência da manifestação de vontade à manifestação de vontade distorcida da realidade, até mesmo porque se encontra fundada em informação deficiente e até mesmo desconhecida da parte contrária.

A despeito de, tradicionalmente, o dever de informação estar regulado apenas no Código de Defesa do Consumidor, tratamento semelhante deve ser dispensado no campo das relações paritárias entre particulares, sobretudo depois que o nosso Código Civil inseriu em artigos pertinentes à espécie os deveres de probidade e honestidade no trato negocial (art. 422).

Um dos efeitos mais expressivos, doutrina Bruno Miragem, da incidência da boa-fé objetiva, e seu acolhimento na dogmática contratual no Brasil é o reconhecimento de um amplo dever de informar aos contratantes. Dentre as condutas que concretizam os deveres de lealdade e cooperação entre os contratantes, em esforço comum pelo adimplemento contratual e atendimento reciproco dos interesses úteis representados pelo contrato, o comportamento de oferecer a contraparte informações em relação a aspectos essenciais sobre a relação jurídica estabelecida é aquele que permite visualizar com major clareza o próprio proposito da regra em questão.[6]

Pois bem. Diz Judith Martins Costa, Giovana Benetti e Luca Giannotti, que na fase formativa, a boa-fé impõe anexos de informação e deveres de proteção para com o segurado, designadamente impondo ao segurador uma análise cuidadosa da informação sobre os riscos a cobrir, com vistas à adequação do seguro a propor às necessidades e exigências do segurado.[7]

Enfim, pode até o segurado contratar um seguro sabendo que haverá peças usadas na reposição do veículo sinistrado, tal como foi determinado pela Circular Susep nº 639, de 09 de agosto de 2021, que à época destacou: “Para fins de reparação do veículo em caso de sinistro, é admitido o uso de peças novas, originais ou não, nacionais ou importadas, desde que mantenham as especificações técnicas do fabricante”.[8]

Não vou me alongar no que tange minha repulsa ao uso de Circulares no mercado securitário, posto que estas a maioria das vezes extrapolam às leis. [9]

Finalmente é de ser repisado o que disseram os autores acima identificados, ou seja, de que “a seguradora, na condição de profissional do risco, tem o dever de informação acerca do objeto do contrato, das limitações e dos riscos não abrangidos pela cobertura”.[10]

Informar e aceitar o que será clausulado nas apólices de seguro é dever dos contratantes previsto dentro da teoria geral do negócio jurídico, vale dizer, o dever de cooperação, que em tradução livre é “o fio condutor que serve para orientar o jurista através de questões mais importantes do direito das obrigações”.[11]

Esses são os fundamentos que me levaram discorrer sobre o tema acima epigrafado.

Porto Alegre, 27 de agosto de 2023.

 

[1] Artigo 112 do nosso Código Civil.

[2] Vide artigo 441 do CC.

[3] Coordenadores. Luis Felipe Salomão. Flávio Tartuce. Articulista citado página 190. Editora Gen/Atlas, 2017, página 190

[4] Artigo 1.362 do Código Civil iItaliano de 1.942.

[5] Autor citado. Direito dos Seguros, 2ª edição (Revista e Atualizada). Editora Almedina, Janeiro de 2016, página 623.

[6] Os Direitos do Segurado e os Deveres do Segurador no Direito Brasileiro atual e no projeto de Lei do contrato de seguro (PLC 29/2017: Exame Crítico. Instituto Brasileiro do Direito do Seguro – IBDS.

[7] Direito dos seguros. Comentários ao código Civil. Ilan Goldberg e Tiago Junqueira Coordenadores. Editoras gen/Forense, 2023, página 103.

[8] Artigo 13 da Circular acima referenciada.

[9] Vide em meus diversos comentários sobre o princípio da hierarquia das Leis.

[10] Ibidem.

[11]  Emilio Betti. Teoria General de las Obligaciones. Editorial Revista de derecho privado, tomo I, Madrid, página 3.