O que vem a ser o anarcocapitalismo?
Por Gisele Leite
Professora universitária há três décadas; Mestre em Direito; Mestre em Filosofia; Doutora em Direito; Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas; Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE – Associação Brasileira de Direito Educacional; Vinte e nove obras jurídicas publicadas; Articulistas dos sites JURID, Lex Magister; Portal Investidura, Letras Jurídicas; Membro do ABDPC – Associação Brasileira do Direito Processual Civil; Pedagoga; Conselheira da Revista de Direito Civil e Processual, Revista de Direito Prática Previdenciária e Revista de Direito Trabalho e Processo, da Paixão Editores – POA – RS.REFOME
O anarcocapitalismo remonta ao jusnaturalismo que corresponde a uma teoria que afirma existir um conjunto de direitos naturais, com os quais o homem já nasce com estes, tais como o direito à vida, à segurança, à saúde e à sua manutenção. O anarcocapitalismo acrescentou entre os direitos naturais o direito à propriedade privada, entendido como aquele no qual os direitos individuais estariam contidos e pagos.
O ser humano já goza da autopropriedade, isto é, o direito ao seu próprio corpo e ao recurso sem proprietário anterior desde que produzisse alguma forma de trabalho, bem como a propriedade doada ou herdada.
Lembrando que a apropriação original ocorre por meio do trabalho, mas deve ocorrer antes que qualquer outra pessoa considerasse a propriedade como sua. Também enfatiza que as trocas de propriedade só serial válidas e legítimas quando feitas voluntariamente e, sem qualquer coerção.
O anarcocapitalismo, eticamente, se fulcra no princípio da não agressão à vida e à propriedade de outrem. E, o Estado será considerado ilegítimo em face de seu caráter coercitivo e soberano que se impõe perante a todos e sob forma de leis, impostos e o monopólio do uso da violência, sem que os indivíduos pudessem separar-se ou negar-se a cumprir as leis sem sofrer sanções.
Aliás, os impostos são considerados grave agressão para os anarcocapitalistas, e representaria violação ao princípio da não agressão e a livre iniciativa que seria a única via possível para sua plena aplicação. Para os adeptos dessa corrente ideológica, “os serviços ofertados pelo Estado, tais como defesa, segurança e justiça, não têm um caráter essencialmente público, por isso poderiam ser ofertados pela iniciativa privada.”
Enfim, o concreto caminho para uma sociedade realmente livre seria apenas o capitalismo de livre mercado, onde só ocorrem trocas comerciais livres, pacíficas e voluntárias. Tal corrente ainda se mostra ser visceralmente contrária às intervenções estatais, isto é, pois apenas a livre iniciativa seria suficiente para manutenção da dinâmica de oferta e procura e que acarretaria uma concorrência equilibrada, diversificada e saudável.
Trata-se de ideologia ultraindividualista e proporcionando privatização e descentralização do poder econômico do Estado. O fundador do anarcocapitalismo foi Murray Rothbard, um dos expoentes da Escola Austríaca de Economia, na segunda metade do século XX e que procurou a revitalizar os princípios liberais anteriores à Adam Smith. O anarcocapitalismo, ou simplesmente, Ancap idealiza um sistema de propriedade privada onde exista empreendedorismo, lucro, sem a existência do Estado que aliás, segundo seus adeptos, impede o pleno desenvolvimento do capitalismo.
Como discípulo de Mises, Rothbard teorizou o anarcocapitalismo, combinando ideias liberais, ideias jusnaturalistas (considerando o direito à vida, à propriedade, à não agressão e à soberania do indivíduo como direitos naturais) e a ideia de extinção do Estado a partir de teóricos anarquistas individualistas. Essa mistura pode gerar a dúvida: afinal, o anarcocapitalismo é de qual espectro ideológico se junta elementos de ideologias diversas?”
Destaque-se que o maior representante do anarcocapitalismo de vertente utilitarista é o economista David Friedman, da Escola de Chicago. Diferentemente de Rothbard, que ancora sua idealização de uma sociedade anarcocapitalista no Direito Natural (jusnaturalismo), Friedman ancora sua idealização de uma sociedade anarcocapitalista no utilitarismo, isto é, nas vantagens econômicas, em uma perspectiva racional de maximizar os benefícios e diminuir os custos, portanto norteada pela eficiência econômica.
Aliás, a crítica de Friedman ao Estado lastreia-se na justificativa da ineficiência, e, não na moralidade ou não das intervenções estatais. Ainda preconizou que os conflitos fossem resolvidos por meio da arbitragem, ou sejam, por meio de agências de leis privada, retirando-se o Poder Judiciário. Assim, os tribunais privados concorreriam entre sim e apresentariam legislações diferentes, assim, as empresas de segurança contratariam os tribunais conforme a legislação preferida por seus clientes.
Sublinhe-se que Rothbard é considerado ao pai do anarcocapitalismo, sendo considerado um libertário apesar de sua formação liberal e influenciado pelo liberalismo de Von Mises, sob as velhas premissas do laissez-faire, destinando o Estado apenas a prestação de serviços restritos, tais como defesa e proteção.
Há dentro do anarcocapitalismo diversas correntes de libertarianismo. Porém, a corrente utilitarista e a corrente jusnaturalista são divergentes. Poisa primeira, parte de uma ética comum, pautada na noção de custo-benefício e, a segunda é norteada pelo princípio da não agressão considerado universal e que jamais pode ser quebrado, ainda que fosse útil a um grande número de pessoas.
Frise-se que o anarcocapitalismo não tem relação com o anarquismo histórico, apesar de que Rothbard sofrera influência de alguns anarquistas dos EUA do século XIX em vertente individualista, tais como Benjamin Tucker e Lysander Spooner.
No anarquismo, a liberdade de iniciativa e de associação é permeada pelo desenvolvimento do indivíduo em que múltiplo aspectos por meio da experiência coletiva em agrupamentos voluntários. Procura obter uma harmonia no equilíbrio entre direitos iguais e liberdade individual.
Enfim, o anarcocapitalista é, em verdade, uma teorização filosófica, política e econômica que segue um matiz ultraliberal. Não existem experiências concretas de anarcocapitalismo, apesar de que seus adeptos evoquem até exemplos de sociedades antigas quando, aliás, inexistia o Estado. Porém tal ideário não existe e jamais existiu.
Referências
DE ALMEIDA, Gustavo Diorlando Moreira. Praxeologia e Liberalismo: Análise da Relação entre a Escola Austríaca e Filosofia Liberal Clássica. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/72310/1/2022_tcc_gdmalmeida.pdf Acesso em 4.3.2024.
MISES, Ludwig von. Liberalismo – Segundo a Tradição Clássica. 2 ed. Tradução de Haydn Coutinho Pimenta. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010b.
ROTHBARD, Murray. Anatomy of the State. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2009b.
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