Aprisionamento digital
Por Gisele Leite
Professora universitária há três décadas; Mestre em Direito; Mestre em Filosofia; Doutora em Direito; Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas; Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE – Associação Brasileira de Direito Educacional; Vinte e nove obras jurídicas publicadas; Articulistas dos sites JURID, Lex Magister; Portal Investidura, Letras Jurídicas; Membro do ABDPC – Associação Brasileira do Direito Processual Civil; Pedagoga; Conselheira da Revista de Direito Civil e Processual, Revista de Direito Prática Previdenciária e Revista de Direito Trabalho e Processo, da Paixão Editores – POA – RS.
Resumo: Os jovens e crianças apesar de livres de fraturas ósseas apresentam máculas sérias na saúde mental por conta do uso excessivo da internet e de celulares.
Palavras-chave: Geração Z. Celulares. Internet. Saúde Mental. Experiência de vida.
Recente pesquisa concluiu que as crianças e adolescentes dos EUA fraturam ossos cada vez menos. Eis que ficam isolados e grudados em telas como as do celular, num autêntico aprisionamento digital. Ad comparandum, seus país, avós ou avôs ou qualquer pessoa acima de meio século de existência possuem maior risco de fratura do que os meninos e meninas entre dez a dezenove anos.
Estatísticas comprovam que até o ano de 2000, eram os garotos que lideravam as internações por acidentes, com mais de quinze mil casos a cada cem mil habitantes, seguidos das meninas, com pouco mais de dez mil.
Já em 2018, as internações caíram pela metade, são os dados dos Centers of Disease Control and Prevention, um órgão oficial norte-americano que monitora a taxa de hospitalização nos EUA seja por lesões acidentais, como braços, dedos, pernas, punhos e outras fraturas gerais.
A priori, parece ser bom não haver fraturas ósseas, mas por outro víeis significa que não há experiências vivenciadas e, o psicólogo Jonathan Haidt, escritor de “A geração ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais”, um volume de 385 (trezentos e oitenta e cinco) páginas a ser lançado no Brasil em novembro pela Companhia das Letras.
No índice remissivo, a obra inclui palavras que deveriam passar longe do universo infantil, como “ansiedade”, “automutilação”, “depressão” (mencionada em vinte páginas), “hikikomori” (isolamento social grave, identificado em muitos jovens japoneses), “pornografia” e… “Zuckerberg”.
Até a primeira geração passar a puberdade com smartphones em mãos – o primeiro iPhone foi lançado em 2007 e a mídia social ganhou força em 2012. Foi então que o índice de adolescentes feridos psicologicamente escalou incessantemente, e o número de ossos quebrados despencou”, revela Haidt.
Haidt compilou estudos, debates e sugestões, tornando-se mais uma voz que engrossa o crescente movimento contra smartphones nas mãos de crianças e adolescentes no país. Ele ainda lançou o site Free The Anxious Generation (Liberte a geração ansiosa).
Já o autor Simon Sinek, um entre dezenas de entrevistadores que convocaram Haidt nos últimos dias, fez em seu podcast uma pergunta com resposta embutida: “O que aconteceu com os pais que levavam lápis-de-cera, papéis e livrinhos para os restaurantes em vez de colocar crianças na frente de telas de celulares para almoçaram em paz?”
Há o alerta que a Geração Z, nascida entre 1995 e 2010, é a primeira a ingressar na puberdade com um “portal em seus bolsos”, longe de interação presencial e sugada por um mundo virtual viciante e instável.
Esta é a geração[1] mais avessa a correr qualquer tipo de riscos, e entrará para a história como a que carrega mais problemas de saúde mental, sedentarismo e falta de habilidades sociais.
“Essas crianças raramente vão para a casa dos amigos, apenas ficam sozinhas em casa no telefone.” E, essa falta de convivência é uma das principais fontes de depressão: as taxas de depressão e suicídio entre meninos e meninas basicamente duplicaram.
Entre os anos 2010 e 2019, o aumento de meninos americanos entre dez e dezenove anos que tiraram suas próprias vidas foi de 35%. No caso de meninas da mesma faixa etária, o salto ficou em 59%, na tabulação de dados feita pelo autor.
Os meninos isolam-se em casa, em vez de brincarem ao ar livre, mas pelo menos se juntam mais frequentemente em grupos em torno dos videogames.
Haidt, que nasceu em 1963, reforça que a mudança de hábitos deve começar a partir de quatro regras, a serem implementadas conjuntamente pela sociedade: a primeira regra é não colocar um smartphone na mão de ninguém até o início do High School, que nos Estados Unidos equivale à nona série, ou 14 (quatorze) anos completos.
“Os anos entre a sexta e oitava séries são uma época muito difícil da vida das crianças. Temos que tirar esses aparelhos inteiramente dessa faixa etária”, afirma o autor.
Nos Estados Unidos, crianças começam a ir para a escola sozinhas por volta dos onze anos, então um telefone básico se faz necessário para se comunicarem com os pais no caminho.
Haidt, inclusive, é a favor da volta ao flip-phone tradicional (só ligação e SMS) para crianças com menos de 14 (quatorze) anos, além de apoiar o uso de telefones feitos especialmente para elas, como as marcas Gabb, Pinwheel e Bark, inexistentes no Brasil, que são despidas de internet, jogos ou aplicativos nocivos. São aparelhos mais elementares, com câmeras, SMS, e opções como Duolingo.
Ressalte-se que o WhatsApp é pouco usado entre americanos no dia a dia e não é uma ferramenta comercial (usa-se mais para se comunicar com quem vive no exterior). Por isso, não faz falta nos telefones sem internet.
A segunda regra proposta por Haidt é proibir acesso às redes sociais até os 16 (dezesseis) anos, idade também indicada por Vivek Murthy, cirurgião-geral do governo americano, num estudo divulgado em 2023, Haidt celebrou ainda a decisão do governo da Flórida, que em março passado vetou a mídia social para menores de 14 (quatorze) anos, um passo para alcançar a idade ideal de 16 (dezesseis).
A terceira sugestão é abolir celulares das escolas, uma vitória vencida pelo secretário municipal de Educação do Rio de Janeiro, Renan Ferreirinha, que implementou a prática na rede pública.
Professor universitário, Haidt sabe que as notificações são um imenso fator de distração e observa que os jovens navegam até em sites de pornografia em sala de aula. Haidt também apoia as pochetes Yondr[2], usadas em escolas para trancar os telefones durantes as aulas. A escola judaica Alef Peretz, de São Paulo, foi a pioneira no Brasil a adotar o produto.
Quarta regra seria acabar com a onda de superproteção parental que tomou conta das últimas gerações. Haidt, que tem dois filhos adolescentes, enfatiza a importância de promover mais independência para as crianças, mais brincadeiras ao ar livre e responsabilidades no mundo real, incluindo tarefas domésticas.
Não devemos proteger nossos filhos de se estressar, porque o estresse faz parte da vida.
Com uma ressalva: é fundamental estar atento ao estresse duradouro, a longo prazo. Ninguém deve ficar ansioso ou preocupado por dias. Isso é muito ruim.
Haidt diz que essas quatro mudanças, de custo quase zero, não são difíceis de implementar se feitas coletivamente. Quando os pais e as mães se comprometem em conjunto, eles livram seus filhos da tirania do smartphone e da mídia social.
E, ainda dão a eles uma infância divertida com amigos que brincam pessoalmente. Os pais têm um grande papel conjunto em promover a brincadeira e a independência, além da função crucial de adiar o ingresso de seus filhos no mundo virtual.
No Brasil, onde o problema é semelhante, o combate à superexposição dos menores às telas está alguns passos atrás: não existem telefones celulares especializados para crianças e adolescentes, que ajudam a adiar o acesso às mídias sociais.
Nos Estados Unidos, há ainda dezenas de movimentos de pais americanos engajados, que pregam, baseados em ciência e informação, adiar o ingresso de crianças às redes sociais e reduzir ao máximo a exposição às telas – entre eles, o Wait Until 8th , Delay is the Way , Defend Young Minds, 1000 Hours Outside e Protect Young Eyes.
Esses pais, juntos, têm um grande poder de persuasão para atrair mais famílias nessa luta para adiar a compra do smartphone para os filhos.
Durante as minhas consultas, afirma Haidt, alguns jovens entram em crise aguda de ansiedade. Choram e dizem que não conseguem imaginar como seria a vida com apenas ‘duas horas de telas’ diárias”, revela Fortes.
No livro, Haidt compara esse tipo de reação à abstinência de usuários de drogas pesadas como cocaína e heroína que, assim como o vício em smartphone, estimulam a dopamina no cérebro, dando uma sensação de prazer, mas não de satisfação: elas fazem o usuário pedir mais.
O cérebro humano lê todo o conteúdo digital – seja um vídeo, uma foto no Instagram ou um movimento no videogame – como um único tipo de estímulo. A riqueza sensorial (textura, cheiro, tato, atividades físicas) é fundamental para a neuroplasticidade.
O resultado inevitável é a falta de desenvolvimento em habilidades fundamentais para a nossa existência”, alerta. Fortes explica ainda que o tecido nervoso, que recebe e transmite sinais elétricos, é segmentado em áreas específicas para cada habilidade.
Ou seja, em lugares pouco estimulados surgem “apagamentos neuronais”. Isso significa que alguns circuitos são “desligados”. “Por isso, nossos adolescentes estão com menos “aptidões”, o que pode ser irreversível e devastador para um indivíduo em franco desenvolvimento socioemocional”, lamenta o médico.
“No entanto, o papel do limite não cabe apenas aos pais. Muitas vezes, escolas já extrapolam o tempo de telas conectando os alunos ou pedindo deveres de casa em plataformas digitais.
Defende-se um ambiente escolar totalmente livre de telas, diz o médico, que também apoia a exigência de regulamentação das redes e elaboração de algoritmos pelas big techs que protejam crianças e adolescentes.
O tempo excessivo de telas prejudica o sono, que atrapalha a rotina alimentar, que prejudica o crescimento físico e mental saudável, e piora as relações interfamiliares, já delicadas na adolescência. Precisamos arrumar essa cadeia de acontecimentos, antes que seja tarde,” diz ele.
Para muitos da Geração Z, os efeitos já são sentidos. Haidt argumenta que essa é a geração mais tímida, que menos arrisca, menos namora e faz menos sexo.
Essas características já são aparentes no mercado de trabalho: gerentes que empregam esses jovens dizem que essa é uma turma difícil de administrar, e de empregar: a mão de obra tornou-se mais escassa.
Até no Vale do Silício, onde grandes empreendedores até pouco tempo atrás despontavam já na faixa dos vinte anos, a Geração Z anda devagar. Desde 1970, esta é a primeira vez que nenhum deles figura entre os fundadores mais promissores da indústria.
A proibição do uso de celulares vale para dentro de sala de aula e os intervalos entre as aulas, incluindo o recreio. Apenas na Educação de Jovens e Adultos será permitido o uso de celulares nos intervalos.
O decreto municipal do Rio de Janeiro orienta que os celulares e demais dispositivos eletrônicos deverão ser guardados na mochila ou bolsa do próprio aluno, desligado ou ligado em modo silencioso e sem vibração. Apesar disso, a publicação deixa margem para que a equipe da escola adote outra estratégia de preferência.
Os alunos com deficiência ou com condições de saúde que necessitam destes dispositivos para monitoramento ou auxílio de sua necessidade também têm autorização para mantê-los em funcionamento na escola.
O uso também pode ser liberado quando a cidade estiver classificada nos estágios operacionais[3] 3, 4 e 5 pelo Centro de Operações da Prefeitura do Rio. Isso ocorre em situações que causam impacto na rotina da cidade, como temporais que provocam alagamentos e incidentes graves de trânsito ou segurança pública.
A decisão foi embasada em consulta pública realizada pela Secretaria Municipal de Educação, que teve a participação de mais de 10 mil contribuições. Os resultados mostraram que 83% dos participantes foram favoráveis à proibição, 11% parcialmente favoráveis e 6% contrários.
O decreto se baseia em relatórios da Organização Mundial da Saúde, Unesco e estudos de países como Bélgica, Espanha e Reino Unido. Dados do Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa) da OCDE, por exemplo, apontam uma correlação negativa entre o uso excessivo de tecnologias e o desempenho acadêmico.
O autor Haidt sabe que muita gente acredita que essa epidemia é irreversível, porque, como se diz em inglês, “o trem já deixou a estação”. Para essas pessoas, Haidt manda um recado: “Ora, se o trem está cheio de crianças em direção a uma ponte quebrada, é hora de freá-lo.” Será que ainda é possível?
Referências
COSTA, Rariane. Rio proíbe uso de celular em escolas: quais países têm restrições do tipo? Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/rio-proibe-uso-de-celular-em-escolas-quais-paises-tem-restricoes-do-tipo/ Acesso em 18.4.2024.
HAIDT, Jonathan. The Anxious Generation: How the Great Rewiring of Childhood Is Causing an Epidemic of Menta Illness Hardcover. EUA: Penguin Press, 2024.
MENAI, Tania. Braços Inteiros, Mentes Quebradas. Revista Piauí. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/criancas-adolescentes-celular-saude-mental-fisica/ Acesso em 18.4.2024.
SHRIER, Abigail. Bad Theory: Why the Kids Aren’t Growing Up Hardcover. EUA: Sentinel, 2024.
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[1] A geração Z compreende o grupo de pessoas nascidas a partir de 1995. Cresceram junto com a popularização da internet e interagem com o mundo integrando todas as formas de tecnologia disponíveis. Para esse grupo, a visão sequencial do tempo é substituída pela visão paralela do tempo, em que é a realidade é simultânea e é possível realizar várias atividades ao mesmo tempo, acessar várias realidades, participar de diversos grupos.
[2] A pochete, da marca norte-americana Yondr, tem uma trava magnética semelhante às etiquetas antifurtos, presentes em lojas. Ao chegar na escola, os aparelhos serão colocados dentro da bolsa e serão liberados somente no fim da última aula pelo professor ou por um funcionário da escola.
[3] ESTÁGIO 1 (verde): Significa que não há qualquer alteração ou ocorrência na cidade que provoque alteração significativa na rotina do carioca. Baixo ou nenhum impacto na fluidez do trânsito e das operações da infraestrutura e logística da cidade.
ESTÁGIO 2 (amarelo): Risco de haver ocorrências de alto impacto na cidade.
Há ocorrência com elevado potencial de agravamento. Ainda não há impactos na rotina da cidade, porém, os cidadãos devem se manter informados;
ESTÁGIO 3 (laranja): Uma ou mais ocorrências provocando impactos a cidade. Há certeza de que haverá ocorrência de alto impacto no curto prazo. Pelo menos uma região da cidade está impactada, causando reflexos relevantes, e afetando diretamente a rotina da população ou parte dela.
ESTÁGIO 4 (vermelho): Uma ou mais ocorrências graves impactam a cidade ou há incidência simultânea de diversos problemas de médio e alto impacto em diferentes regiões da cidade. As regiões impactadas geram reflexos graves/importantes na infraestrutura e logística urbana, e afetam severamente a rotina da população ou parte dela.
ESTÁGIO 5 (roxo): Uma ou mais ocorrências graves impactam a cidade. Os múltiplos danos e impactos causados extrapolam de forma relevante a capacidade de resposta imediata das equipes operacionais da Prefeitura do Rio. As regiões impactadas causam reflexos graves/importantes na infraestrutura e logística urbana, e afetam severamente a rotina da população ou parte dela.