
A indispensável atualização da responsabilidade civil no projeto do Código Civil
Isabel Gallotti
Ministra do STJ
Nelson Rosenvald
Parecerista/advogado. Foi Procurador de Justiça do MP/MG. Pós-Dout Univ. de Coimbra e Roma Tre. Dr. Direito Civil PUC/SP. Presidente Emérito do IBERC.
Patrícia Carrijo
Vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e também é a atual presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Goiás (Asmego).
Atualmente, o Projeto de Revisão e Atualização do Código Civil encontra-se no Senado Federal (PL 4/25). Na qualidade de integrantes da comissão de responsabilidade civil, pretendemos trazer ao público a motivação das propostas, lançando luzes para os seus méritos, contribuindo para o bom debate.
Vislumbramos uma sistematização da responsabilidade civil, tendo em vista o estágio atual da sociedade brasileira. O direito privado se encontra em um momento muito distante do estado da arte do final dos anos sessenta do século XX, época em que foi forjado o Código Civil. Trata-se de meio século que transformou a vida humana e os seus costumes de modo mais significativo que os últimos dois mil anos de civilização.
No entanto, especialmente em relação à responsabilidade civil, a lacuna se amplia. A comparação se dá entre aquilo que se pretende para o futuro e o Código Civil de 1916, já que nessa matéria os dispositivos do Código Civil em vigor reproduzem o conteúdo do seu antecessor, o Código Beviláqua, inovando apenas na inserção da cláusula geral do risco da atividade. Como observou o civilista Fernando Noronha logo após a vigência do Código Reale: “Temos um Código novo, mas que quanto a responsabilidade civil já nasceu velho”.
Em resumo, há um desajuste temporal de mais de 100 anos, justamente na disciplina mais dinâmica do ordenamento. A responsabilidade civil da atualidade atua como repositório da ofensa à complexas situações patrimoniais, atenua efeitos danosos da violação de direitos da personalidade e das recentes pressões oriundas das tecnologias digitais emergentes. Ao mesmo tempo que a pressão sobre a responsabilidade civil cresce exponencialmente, constata-se que os 27 artigos do Código Civil dedicados à disciplina em muito se distanciam daquilo que se requer para uma aproximação aos instrumentos europeus mais recentes e com o elogiado Código Civil da Argentina de 2015. Com efeito, outros sistemas jurídicos funcionam como espelhos – vendo-se os outros, percebe-se melhor o que somos. Para suprir essa insuficiência normativa, as decisões dos Tribunais, de forma esparsa e assistemática em nosso país continental, têm forjado o arcabouço da responsabilidade civil, o que não parece guardar coerência com o nosso sistema baseado na civil law.
A responsabilidade civil requer ampla intervenção, como condição necessária para que o Código Civil mantenha relevância normativa em nosso ordenamento. Sem negar a centralidade da Constituição em nosso ordenamento, é imperioso resgatar o papel de coordenação do direito privado exercitado pelo Código Civil, no diálogo com os microssistemas. Ilustrativamente, CDC e LGPD incorporam importantes avanços, negligenciados no Código Civil, sobretudo no que concerne à multifuncionalidade da responsabilidade civil. Inclusive, esse é o maior propósito da reforma da responsabilidade civil no Código Civil da França.
Reconhecemos que, como qualquer obra humana, algumas inovações naturalmente merecerão lapidação no parlamento. A conveniência e oportunidade do câmbio legislativo é flagrante, pois a maior parte das demandas cíveis no Brasil – desde os juizados especiais até os tribunais – conecta-se ao tema da responsabilidade civil, sendo prioritário que a lei ofereça aos juízes e tribunais critérios objetivos e claros para a contenção de ilícitos e reparação de danos.
Nas palavras de Winston Churchill “Construir pode ser a tarefa lenta e difícil de anos. Destruir pode ser o ato impulsivo de um único dia”. Com efeito, singela é a missão dos que trazem ao espaço público escritos de um ou dois parágrafos cuja retórica é direcionada à desconstrução ampla, geral e irrestrita das propostas, com base no apelo emocional de jargões como “violação à estabilidade jurídica ou “ofensa à livre iniciativa”. Pelo contrário, a reforma da responsabilidade civil priorizaa convergência entre a segurança jurídica, a proteção da economia de mercado e a mais ampla tutela das vítimas de danos e da coletividade perante toda a sorte de ilícitos.
O certo é que há muito nos despedimos do mundo de Caio e Tício. O Código Civil em vigor mimetiza uma época em que os danos eram exclusivamente individuais e patrimoniais. Contudo, a realidade é outra. Os danos que relevam são metaindividuais e extrapatrimoniais, frequentemente anônimos, dispersos, catastróficos e, no limite, irreparáveis. Por certo, mais de que um monolítico sistema de contenção de danos, é hora de visualizarmos a responsabilidade civil como um sistema de gestão de riscos e contenção de comportamentos antijurídicos, no qual, para além da compensação de vítimas, será necessário prevenir e desestimular ilícitos, restituir lucros antijurídicos e premiar comportamentos meritórios. Urge ajustar as fundamentais diretrizes de Miguel Reale à complexidade dos nossos dias e as reformas em andamento em países que há muito pretendemos alcançar nos Índices de Desenvolvimento Humano.