Universalismo e Relativismo Cultural um Olhar Crítico Sobre a Ótica dos Direitos Humanos

Paulo José Freire Teotônio

 Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), Pós-graduado (especialização) pela Faculdade de Direito Municipal de Franca. Mestre e Doutor pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP-SP). Foi Coordenador dos Cursos de Direito das Faculdades Unificadas de Barretos (UNIFEB) e do Instituto Municipal de Ensino de Bebedouro (IMESB-VC). Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Henrique Augusto Freire Teotônio

Advogado, Bacharel em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito “Laudo de Camargo”, da Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP, Especialista em Advocacia Criminal e Teoria do Delito pela Universidade de São Paulo (USP), Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), Pós-graduando em Direito Público e Privado na Universidade de Santiago de Compostela, pós-graduado em direitos humanos (PUC-RS), Parecerista e autor de obras jurídicas

Ana Sofia Freire Teotônio

Advogada, Pesquisadora, Bacharel em Direito pela Faculdade Laudo de Camargo da UNAERP/RP, Especialista em Direito Desportivo. Procuradora do TJD/SP

Reila Cabral Sasso

Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP) (2014). Mestra em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP) (2016). Pós-graduada em Ciências Criminais pela Faculdade de São Vicente (FSV) (2022). Analista Jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

 

 

 

 

RESUMO

 O presente trabalho versa sobre a conceituação, entendimento e esclarecimento de aspectos e diferenças entre o universalismo cultural e o relativismo cultural. As duas teses apresentam visões críticas distintas sobre práticas e costumes ao redor do mundo que violam os direitos humanos. Como terceira via da discussão surge o diálogo multicultural.

 

INTRODUÇÃO

 A prática da mutilação genital feminina (MGF), apesar de pouco divulgada e vista por muitos como uma prática distante, extinta, ultrapassada e absurda ainda é muito praticada e comum em vários países ao redor do mundo.

Atualmente, a prática ocorre cotidianamente em 30 países na África, no Oriente Médio, na Ásia e na América Latina. Além disso, devido ao alto fluxo de migração proporcionada por um mundo globalizado e interconectado grupos de indivíduos na Europa Ocidental, América do Norte, Austrália, Nova Zelândia também apresentam essa prática.

Podemos invocar três motivos que justificam e intensificam a ocorrência da automutilação: o costume ou a crença, a sexualidade feminina e a pressão social. A primeira está relacionada com um ritual praticado ao longo de gerações que tradicionalmente faz a passagem das meninas jovens para a fase adulta. A segunda está relacionada com um controle sobre a vida sexual das mulheres para se manterem virgens desestimulando seu prazer sexual. Já a terceira está relacionada com um controle e tradição social que demonstram honra.

De acordo com dados da Organização das Nações Unidas, até 2030, cerca de 68 milhões de mulheres terão suas genitálias mutiladas se a prática não for extinta. Visando a visibilidade e a divulgação da causa, a ONU criou o dia de tolerância zero à mutilação feminina que é celebrado em 6 de fevereiro.

A mutilação é realizada em meninas antes dos cinco anos de idade ou após os cinco até o início da fase adulta, ocorrendo em cerimônias tradicionais sem a presença de qualquer médico especializado ou qualquer cuidado sanitário, colocando inclusive a vida e a integridade física das meninas que realizam o ritual em risco.

De fato, os diferentes costumes morais que são realizados ao redor do mundo passados antepassados devem ser respeitados. Porém desde que não consistam em risco à saúde, a integridade física e a vida de jovens meninas e crianças.

Tais tradições não representam apenas um ato de lesão corporal física das mulheres, mas representam também uma violação, repressão e atentado aos seus direitos humanos e fundamentais.

Essas tradições nada mais são do que uma expressão do machismo, da repressão feminina social, sexualmente e culturalmente. As mulheres são privadas cotidianamente de liberdade de pensamento, liberdade sexual e até mesmo de hábitos e condutas sociais e profissionais. Essa automutilação representa de certa forma uma submissão do feminino sobre o masculino, uma vez que abre mão do seu prazer sexual em prol de aceitação moral na sociedade.

Como lesiona Dulce de Queiroz Piacentini:

“Existem diversas crenças a manter a prática da MGF. Diz-se que os homens a quiseram pelas seguintes razões: assegurar seus poderes; acreditar que suas mulheres não iriam procurar outros genitores ou que homens de outras tribos não as violariam; crer que as mulheres perderiam o desejo sexual. Em algumas tribos, acredita-se que o clitóris é diabólico e que se tocar na cabeça da criança durante o parto, ela estará condenada a inimagináveis desgraças. Outros pensam que essa falsa representação de um pênis minúsculo faria sombra à virilidade masculina” (PIACENTINI, 2007, p. 120).[1]

Três são modalidades de automutilação feminina: a clitoridectomia, a excisão e a infibulação. A primeira consiste na extração de parte ou de todo o clitóris. A segunda consiste em parte ou em todo o clitóris e também dos pequenos lábios. Já a terceira consiste na prática de costura da vulva.

Esses procedimentos são realizados sem o acompanhamento médico ou hospitalar, sendo muitas vezes realizados com facas de cozinha, lâminas, tesouras e canivetes sem a aplicação de sedativo ou anestesia. Segundo a ONU, a prática não representa nenhum benefício a saúde, muito pelo contrário disso, pode gerar traumas médicos, psicológicos podendo ocorrer inclusive infecções, hemorragias e complicações mais graves.

É claro e inequívoca a violação de direitos humanos e fundamentais nesses casos de automutilação. As mulheres como qualquer outro indivíduo humano possuem direito a saúde, educação, integridade física, participação total na sociedade, liberdade de crença, liberdade sexual e direito a honra e dignidade.

O abandono da prática da mutilação genital feminina e os direitos inerentes a proteção dos direitos humanos das mulheres estão previstos nos seguintes tratados internacionais: Convenção contra a tortura e outras penas e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; Pacto internacional dos Direitos Civis e Políticos; Pacto internacional sobre Direitos econômicos, sociais e culturais; Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra as mulheres; Convenção sobre o Direito da criança; Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados e o Protocolo adicional à Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados.

No ano de 1997, a OMS em conjunto com UNICEF e a UNFPA emitiram uma declaração em conjunto sobre a mutilação genital feminina e suas graves consequências para a saúde pública, sendo recomendada sua extinção e abandono. Nessa mesma declaração foi inserida pela primeira vez a terminologia “mutilação genital feminina” que já visava enfatizar a gravidade da prática.

Algumas agências das Nações Unidas utilizam a terminologia “corte” para não denotar uma opinião direcionada sobre a prática e consequentemente não desagradar a comunidades praticantes, se mantendo de certa forma imparcial. O que ao meu ver representa um desserviço e tratamento conivente com uma prática tão cruel e desumana.

  • RELATIVISMO E UNIVERSALISMO CULTURAL

 O universalismo cultural consiste na ideia de estabelecimento de um padrão de emprego e aplicabilidade dos direitos humanos de forma universal, ou seja, inerente a todos os cidadãos de todos os países do mundo, independente de questões de gênero, sexualidade, raça, nacionalidade.

Dessa forma, estaríamos diante de um único padrão de emprego dos direitos humanos no mundo todo. Logo, todas as práticas que violem os direitos humanos independentemente de quem, porque e onde praticou seriam condenáveis não sendo analisados critérios subjetivos e individuais.

Como preconizam Marília Ferreira da Silva e Erick Wilson Pereira:

“O Universalismo Cultural é a proposta de estabelecimento de um padrão universal de direitos humanos, aplicável a todos os povos e culturas indistintamente em decorrência tão-somente da condição de pessoa humana, independentemente de considerações acerca da “raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra circunstância”. (SILVA e PEREIRA, 2013).[2]

De acordo com essa tese, a Dignidade humana é inerente ao indivíduo membro da sociedade e isso seria justificativa suficiente para a criação de um padrão universal de direitos humanos. Além disso, essa tese sustenta que todos os seres humanos possuem valores subjetivos inerentes a condição humana, sendo considerado, portanto, de caráter inalienável e universal.

Nessa teoria pressupõe que a dignidade humana é questão comum para todos os seres humanos. Consequentemente, os aspectos sexuais, de raça, de nacionalidade, de crença, de opinião, língua e demais são desconsiderados, tendo em vista a prevalência da dignidade humana.

Em contraposição ao universalismo existe a teoria relativista que acolhe em especial a identidade cultural, costumes e tradições dos diferentes povos e indivíduos nas diversas partes do mundo e inseridos em contextos sócios-culturais diversos.

O relativismo contesta a padronização universal dos direitos humanos imposto pela teoria do universalismo. Nesse sentido, de acordo com o relativismo é necessário respeitar as peculiaridades culturais e sociais de cada povo, não deliberar com base em um padrão único e universal, mas sim analisando seu contexto e subjetividades.

A teoria relativista se opõe a coletividade padronizada instituída pela teoria do universalismo. A interpretação dos direitos humanos, nessa teoria, deve considerar a interpretação dos costumes, tradições e aspectos sociais de cada povo.

Como muito bem preceitua Flávia Piovesan:

“Para os relativistas, a noção de direito está estritamente relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em determinada sociedade. Sob esse prisma, cada cultura possui seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade”.[3]

Essa teoria relativista tem caráter mais preservacionista, uma vez que prioriza a permanência e manutenção dos costumes e tradições como uma forma de preservar a herança cultural e social de cada povo. Logo, essa teoria busca a preservação das tradições já existentes e evita que o universalismo que está sujeito a discriminações religiosas por exemplo vá de encontra com as práticas religiosas e culturais de cada povo.

 

ANÁLISE DA APLICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA REALIDADE E POSICIONAMENTO DA ONU

 A Organização das Nações Unidas adotou a tese do Universalismo dos direitos humanos, como podemos verificar na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Os países simpatizantes da teoria do relativismo alegam que a teoria universalista ao padronizar internacionalmente os direitos humanos ignorando suas subjetividades estaria atuando como uma forma de imposição dos princípios, valores e costumes do ocidente e dos países mais poderosos sobre os demais

Tendo isso em vista, a teoria universalista funcionaria como uma forma de imperialismo cultural dos países mais ricos, poderosos e influentes sobre os demais países do mundo.

De acordo com Fredys Sorto:

 

(…) No caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos alega-se que ela também padece do mal do relativismo, pois é fruto das tradições culturais ocidentais que não correspondem às de outros povos, notadamente os que violam de modo contumaz os direitos essenciais. O ponto é que há valores que de fato são particulares, como tais devem ser respeitados, desde que eles, naturalmente, não conflitem com os valores que são universais, que constituem o núcleo duro dos direitos humanos. (…). (SORTO, 2002).[4]

No caso da mutilação da genitália feminina, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), essa prática gera um gasto econômico e humano de cerca de 1,4 bilhão de dólares por ano.

A ONU estima que cerca de 200 milhões de meninas ao redor do mundo foram vítimas da prática da mutilação de sua genitália. Segundo António Guterres o Secretário Geral da ONU: “A mutilação genital feminina é uma manifestação flagrante da desigualdade de gênero que está profundamente enraizada nas estruturas sociais, econômicas e políticas.” (GUTERRES, 2020).

As organizações internacionais como a UNICEF, o Fundo das Nações Unidas para a infância e a UNFPA tem se juntado para a criação de programas contra a prática da mutilação da genitália feminina. Estima-se que os programas que incentivam a abolição da prática tenham ajudado cerca de 3 milhões de meninas ao redor do mundo

Nesse sentido, os órgãos internacionais têm entendido que essas práticas violam os direitos humanos e perpetuam a desigualdade de gênero. Tais práticas de acordo com as organizações internacionais devem ser abandonadas e condenadas.

Em Portugal, por exemplo, existe uma tipificação própria no ordenamento jurídico que prevê de dois a dez anos de prisão para aqueles que realizarem a prática. Em 2020 foram registrados cerca de 101 casos da prática.

A Pandemia de Covid-19 com toda a certeza colaborou para a intensificação dessa prática, uma vez que gerou confinamento e afastamento das escolas e programas sociais o que acaba prejudicando o combate a prática desses costumes que violam os direitos humanos.

 

APLICAÇÃO DAS TEORIAS DO UNIVERSALISMO E RELATIVISMO NA PRÁTICA DE MUTILAÇÃO DA GENITÁLIA FEMININA

De acordo com as teorias acima conceituadas podemos analisar sua aplicação em um exemplo real como é o caso da mutilação de genitálias feminina em alguns países como prática religiosa e cultural.

Se formos analisar a prática com base na teoria relativista estaríamos diante de práticas culturais, sociais e tradicionais que devem ser respeitadas e devidamente mantida, tendo em vista que fazem parte da identidade cultural dos grupos que realizam a prática.

Consequentemente, na visão dos direitos humanos as práticas deveriam ser respeitadas não cabendo nenhuma interferência interna ou internacional, pois trata da tradição e costumes da população.

Em contraposição, se o caso em tela for analisado com base na teoria do universalismo estaríamos diante de um claro e inequívoco desrespeito aos direitos humanos.

Desse modo, o país ou grupo de indivíduos que compactuam com a prática estariam sujeitos as penalidades e sanções internacionais por violarem direitos humanos fundamentais e essenciais.

Nota-se que dependendo da teoria que levamos em consideração, o caso possui um desfecho e entendimento diferentes, isso porque a teoria relativista leva em consideração a identidade cultural e subjetiva de cada população. Enquanto, a teoria universalista pressupõe que a dignidade humana é inerente a condição humana e, portanto, é indisponível.

No caso em questão, um defensor do universalismo ficaria indignado e perplexo com tal tradição que desrespeita os direitos humanos e os direitos das mulheres. Ao mesmo um tempo um defensor do relativismo defenderia que tais tradições e cultura fosse mantida, tendo em vista que se trata da identidade de um povo e sua herança cultural, não cabendo nenhuma interferência externa ou julgamento internacional.

 

CONFLUÊNCIA ENTRE O UNIVERSALISMO E O RELATIVISMO CULTURAL

 Como já verificamos, o universalismo defende a aplicação dos direitos humanos com base em um padrão universal, levando em consideração que a dignidade humana é um princípio inerente a condição humana e logo seria um princípio comum e geral a todos os indivíduos, não podendo um indivíduo dispor de um direito tão fundamental.

Já a tese relativista propõe que sejam observadas as peculiaridades culturais de cada povo, de forma que se garanta sua identidade cultural. Consequentemente, os direitos humanos têm que ser analisados com base na realidade e contexto social e cultural em que determinado povo está inserido.

Alguns autores sugerem que o confronto de teses entre o universalismo e relativismo devem ser abandonados. O ideal seria, portanto, a criação de um entendimento multicultural e um diálogo intercultural. Então a confluência entre o universalismo e o relativismo estaria exatamente no entendimento multicultural

Como lesiona Boaventura de Souza Santos (1997):

“Os direitos humanos têm que ser reconceptualizados como multiculturais. O multiculturalismo, tal como eu o entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos no nosso tempo”.[5]

 O diálogo intercultural tem como objetivo integrar os costumes e as culturas presentes ao redor do mundo na busca de um bem ou caminho comum. Esse bem comum deve garantir o cumprimento dos direitos humanos.

De fato, a globalização contribuiu para uma maior aproximação cultural, tecnológica e social dos diversos países do mundo. Uma vez que interligou o mundo e proporcionou uma maior proximidade entre as culturas, o que fez surgir uma cultura global comum.

Nesse sentido, o diálogo multicultural busca ao mesmo tempo preservar as culturas, tradições e a própria identidade cultural em si de cada povo e ao mesmo tempo fazer prevalecer os direitos humanos e fundamentais.

O diálogo intercultural traz aspectos de ambas as teorias. A teoria relativista contribui contestando a imposição de valores e princípios morais e éticos internacionais contra toda e qualquer cultura de forma indistinta. Enquanto, o universalismo contribui questionamento as práticas religiosas e tradicionais defendidas como intocáveis e inalteráveis, porém que violam os direitos humanos trazendo dor e sofrimento para milhões de pessoas ao redor do mundo.

 

PROBLEMATIZAÇÃO PARA A IMPLEMENTAÇÃO DO DIÁLOGO MULTICULTURAL

 A ideia de implementação de um diálogo multicultural é vista por muitos como uma ideia utópica e distante, uma vez que torna-se difícil a confluência entre teses tão distintas de forma que os defensores do universalismo e os defensores do relativismo fiquem plenamente satisfeitos.

A tese universalista transparece um pouco avessa a ideia de inserção das diferentes culturas, tradições e crenças em seu padrão universal de direitos humanos que garantam sobretudo a prevalência da dignidade da pessoa humana. Deste modo, torna-se difícil para os defensores dessa tese aceitarem a incorporação e normalização de práticas e costumes que visivelmente violam direitos humanos fundamentais.

A crítica a essa teoria encontra-se exatamente na ideia de que haveria uma imposição das tradições e costumes do ocidente sobre os demais países. Pois, no ocidente encontram-se os países com maior poder e influência econômicos e militar. Além disso, os defensores do relativismo acreditam que ocorreria uma extinção das identidades culturais de cada povo em nome de uma identidade global comum.

Em contrapartida, a tese relativista se nega se dispor a dialogar e discutir algumas práticas e costumes. De acordo com os defensores do relativismo a cultura e a tradição seriam de fundamental importância e indispensável para a identidade cultural de um povo.

Nesse sentido, os relativistas se negam a abrir mão de um certo conservadorismo e não estão abertos a interferência externa. A principal crítica feita a essa tese é a de que as tradições e costumes não são imutáveis e eternos. As tradições e costumes muitas vezes reproduzem comportamentos machistas, preconceituosos e desumanos.

A piores práticas e costumes são perpetuados acobertados e justificados por uma falsa defesa de “preservação de costumes e identidade cultural”. De fato, a identidade cultural e as tradições de um povo são muito importantes. Contudo até que ponto esses costumes devem ser tolerados quando pessoas são torturadas, lesionada e prejudicadas física e mentalmente.

Acreditamos que existe uma linha muito tênue entre a defesa de costumes e tradições que fazem parte do DNA de um povo e a falsa defesa de tais práticas a fim de que seja mantida uma cultura de privilégios, de perpetuação de preconceitos e de opressão. Em tribos africanas por exemplo o estupro é visto como parte da cultura. Além disso, em tribos indígenas o infanticídio é visto como uma prática religiosa cultural.

Os direitos humanos por vezes devem prevalecer sobre tradições religiosas e culturais, pois o próprio sistema jurídico tutela a vida e a dignidade da pessoa humana com especial atenção, aceitar certas tradições seria normalizar a dor e sofrimento.

As culturas e tradições como bem sabemos são cíclicas e são alteradas ao longo do tempo dependendo do contexto sociocultural. Defender as tradições passionalmente independente do grau de violação dos direitos humanos demonstra-se perigoso e sádico.

Por fim, como podemos observar o entendimento de dignidade humana nas diferentes teses são definidas de formas distintas. Na tese relativista, por exemplo, a dignidade humana estaria na ideia de proteção das culturas, tradições e valores morais e éticos. Em contrapartida, na tese universalista a dignidade humana estaria sobretudo ligada a proteção da vida, da integridade física e da proteção dos direitos humanos.

O diálogo multicultural demonstra-se um desafio, considerando que é quase impossível realizar a confluência das duas teorias sem que haja concessões de pontos sensíveis as duas partes. Por isso o ideal seria o abandono da ideia o universalismo versus relativismo em nome do diálogo intercultural.

Como defende Boaventura Sousa Santos (2003) é necessário abandonar a disputa entre relativismo e universalismo, tendo em vista que tal disputa representa: “Um debate intrinsicamente falso, cujos conceitos polares são igualmente prejudicais para uma concepção emancipatória de direitos humanos”.

Conclui-se que o multiculturalismo representa uma terceira via para a disputa entre relativistas e universalistas. Contudo é preciso que velhas disputas ideológicas sejam abandonadas e que concessões sejam feitas em nome de um diálogo internacional.

 

CONCLUSÃO

 Como podemos observar no decorrer do presente trabalho, existe uma disputa entre ideológica entre a tese universalista e a tese relativista sobre os direitos humanos e sua aplicação na prática.

De acordo com a teoria universalista os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana devem prevalecer sobre toda e qualquer situação que viole direitos humanos, existindo assim, um padrão universal sobre os direitos humanos, já que a dignidade humana e o direito a vida e a integridade física são inerentes aos seres humanos.

Já de acordo com a teoria relativista é necessário preservar a identidade cultural, tradições e costumes dos diferentes povos ao redor do mundo, uma vez que a liberdade religiosa e o direito cultural também integram a dignidade da pessoa humana, sendo necessário analisar as nuances e subjetividades culturais presentes em cada povo.

Para solucionar tal conflito surge o diálogo multicultural que representa uma confluência entre as duas teorias. Porém, como bem vimos a aplicação desse diálogo intercultural encontra barreiras e problemas para a efetivação de sua aplicação prática.

As tradições e costumes que violam os direitos humanos como é o caso da mutilação genitália feminina (MGF) geram grande debate sobre a possibilidade ou não da interferência externa internacional na cultura dos diferentes países do mundo.

Contudo, é necessário respeitar as normas e regras internacionais sobre direitos humanos previstas em tradados e convenções para que se garanta sobretudo uma vida digna, justa e com condições humanas a todos. Afim de evitar que abusos, preconceitos, opressões e injustiças sejam perpetuadas e normalizados, causando dor, sofrimento e injustiça.

 

REFERÊNCIAS

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de diretos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 48, junho de 1997. Faculdade de Economia Da Universidade de Coimbra e de Ciências Sociais.

PIACENTINI, Dulce de Queiroz. Direitos humanos e interculturalismo: análise da prática cultural da mutilação genital feminina. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp034905.pdf. Acesso em: 13 de abril de 2021.

Disponível em:https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/02/06/mutilacao-genital-feminina-o-que-e-e-por-que-ocorre-a-pratica-que-afeta-ao-menos-200-milhoes-de-mulheres.ghtml Acesso em 13 abril 2021.

Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69346/direitos-humanos-x-mutilacao-genital-feminina/2 Acesso em 13 abril 2021.

Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/02/1703172 Acesso em 13 abril 2021.

Disponível em: https://unric.org/pt/dia-internacional-da-tolerancia-zero-a-mutilacao-genital-feminina/ Acesso em 13 abril 2021.

[1]PIACENTINI, Dulce de Queiroz. Direitos humanos e interculturalismo: análise da prática cultural da mutilação genital feminina. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp034905.pdf. Acesso em: 19 de setembro de 2018.

[2]SILVA, Marília Ferreira da; PEREIRA, Erick Wilson. Universalismo X Relativismo: Um entrave ao projeto de humanização social. Direito internacional dos direitos humanos I [Recurso eletrônico on-line]. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=74105d373a71b517>. Acesso em: 23 de outubro de 2016.

[3]PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos. In: SILVA, Marília Ferreira da; PEREIRA, Erick Wilson. Universalismo X Relativismo: Um entrave ao projeto de humanização social. Direito internacional dos direitos humanos I [Recurso eletrônico on-line]. Disponível em:<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=74105d373a71b517>. Acesso em: 23 de outubro de 2016.

[4]SORTO, Fredys Orlando. A Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu sexagésimo aniversário. In: Verba Juris, Anuário da Pós-Graduação em Direito, ano 1, n. 1, jan./dez. 2002. João Pessoa: Editora Universitária (UFPB), 2002. pp. 9-34.

[5]SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de direitos humanos, Revista Lua Nova, v. 39, São Paulo, 1997.