
Racismo reverso
Gisele Leite
Professora universitária há três décadas; Mestre em Direito; Mestre em Filosofia; Doutora em Direito; Pesquisadora – Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas; Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE – Associação Brasileira de Direito Educacional; Vinte e nove obras jurídicas publicadas; Articulistas dos sites JURID, Portal Investidura, Letras Jurídicas; Membro do ABDPC – Associação Brasileira do Direito Processual Civil; Pedagoga.
A temática referente ao racismo reverso[1] tem ocasionado acalorados debates em nossa sociedade, especialmente, nas redes sociais onde há acirradas discussões. A questão do racismo está contemplada no artigo 5º da CF/1988 tida como cláusula pétrea, e disposta no inciso XLII, que estabelece que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão.
A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 apenas três meses após a promulgação da Constituição Federal brasileira vigente, o país já contava com uma legislação específica definindo os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor.
A referida lei estabeleceu os tipos penais de racismo, criando condutas criminosas do artigo 2º ao 20, com diversas modificações ao longo de seus 36 (trinta e seis) anos de vigência.
Em geral, essas condutas se traduzem na prática de obstar, impedir ou recusar o acesso de pessoas a determinados estabelecimentos públicos e privados, prevendo punições severas para crimes resultantes de discriminação ou preconceito por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
A Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação racional e formas correlatas de intolerância que foi assinada na Guatemala em 05 de junho de 2013 e promulgado pelo Brasil pelo Decreto 10.932, de 10 de janeiro de 2022.
E, apresenta definições relevantes no seu artigo 1º, sendo:
- Discriminação racial é qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes.
A discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica.
- Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
- Discriminação múltipla ou agravada é qualquer preferência, distinção, exclusão ou restrição baseada, de modo concomitante, em dois ou mais critérios dispostos no artigo 1.1, ou outros reconhecidos em instrumentos internacionais, cujo objetivo ou resultado seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes, em qualquer área da vida pública ou privada.
- Racismo consiste em qualquer teoria, doutrina, ideologia ou conjunto de ideias que enunciam um vínculo causal entre as características fenotípicas ou genotípicas de indivíduos ou grupos e seus traços intelectuais, culturais e de personalidade, inclusive o falso conceito de superioridade racial.
O racismo ocasiona desigualdades raciais e a noção de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente justificadas.
Toda teoria, doutrina, ideologia e conjunto de ideias racistas descritas neste artigo são cientificamente falsas, moralmente censuráveis, socialmente injustas e contrárias aos princípios fundamentais do Direito Internacional e, portanto, perturbam gravemente a paz e a segurança internacional, sendo, dessa maneira, condenadas pelos Estados Partes.
- As medidas especiais ou de ação afirmativa adotadas com a finalidade de assegurar o gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais de grupos que requeiram essa proteção não constituirão discriminação racial, desde que essas medidas não levem à manutenção de direitos separados para grupos diferentes e não se perpetuem uma vez alcançados seus objetivos.
- Intolerância é um ato ou conjunto de atos ou manifestações que denotam desrespeito, rejeição ou desprezo à dignidade, características, convicções ou opiniões de pessoas por serem diferentes ou contrárias.
Pode manifestar-se como a marginalização e a exclusão de grupos em condições de vulnerabilidade da participação em qualquer esfera da vida pública ou privada ou como violência contra esses grupos.
Já o crime de injúria está previsto no artigo 140 do Código Penal brasileiro que se insere no rol de crimes contra a honra. E, consiste em injuriar alguém ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. A pena é detenção, de um a seis meses, ou multa.
O juiz pode deixar de aplicar a pena quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria e no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria.
A injúria real consiste no emprego de violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes. Neste caso, a pena é de detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência.
Por sua vez, o crime de injúria racial ou qualificada, incialmente, foi previsto no § 3º, do art. 140, do CP, introduzido pela Lei 9.459, de 1997.
A Lei nº 14.532, de 2023, modificou substancialmente, o crime de injúria racial do Código Penal. Desta feita, se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência, a pena será de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
No entanto, a mesma lei nº 14.532, de 2023, também modificou a lei do crime de racismo para criar no seu artigo 2º-A, a figura da injúria, desta feita com todas as consequências severas da Lei nº 7.716, de 1989, cuja conduta típica consiste em injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional, pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.
O tema sobre racismo reverso foi analisado pelo STJ[2] no HC 929002. No caso, o Ministério Público do Estado de Alagoas denunciou o acusado pela prática de injúria racial, prevista no artigo 140, § 3º, do Código Penal, por ofender a honra de terceiro ao chamá-lo de “escravista cabeça branca europeia” em mensagens enviadas por aplicativo de comunicação.
A defesa impetrou habeas corpus em favor do acusado, pleiteando o trancamento da ação penal sob a alegação de ausência de tipicidade da conduta e inépcia da denúncia.
Destarte, o cerne da discussão, consiste em determinar se um homem negro pode ser responsabilizado pelo crime de injúria racial ao proferir ofensas contra uma pessoa branca em razão da cor de sua pele.
O ministro Og Fernandes, relator do habeas corpus, firmou a seguinte tese de julgamento:
- A injúria racial não se configura em ofensas dirigidas a pessoas brancas exclusivamente por essa condição.
- O racismo é um fenômeno estrutural que visa proteger grupos minoritários historicamente discriminados.
A Lei nº 7.716/1989[3], que regulamentou a questão e pune severamente condutas discriminatórias, geralmente caracterizadas por negar, obstar ou recusar atendimentos em estabelecimentos públicos e privados com base em critérios como cor, raça, etnia, origem, religião ou deficiência, entre outros fatores.
Posteriormente, surgiu a previsão do crime de injúria racial, inserida no § 3º do artigo 140 do Código Penal, estabelecendo pena de reclusão de um a três anos e multa para ofensas baseadas em raça, cor, etnia, religião ou origem.
Em seguida, o Decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022, ratificou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, assinada na Guatemala em 5 de junho de 2013.
Por se tratar de um instrumento de proteção dos direitos humanos, esse tratado ingressou no ordenamento jurídico com status de emenda constitucional, nos termos do § 3º do artigo 5º da Constituição Federal brasileira vigente, que confere esse status a tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados pelo Congresso Nacional em dois turnos, por três quintos dos votos dos parlamentares em cada Casa.
Enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça.
A injúria racial está prevista no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, que estabelece a pena de reclusão de um a três anos e multa, além da pena correspondente à violência, para quem cometê-la.
De acordo com o dispositivo, injuriar seria ofender a dignidade ou o decoro utilizando elementos de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
Em geral, o crime de injúria está associado ao uso de palavras depreciativas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra da vítima. Um exemplo recente de injúria racial ocorreu no episódio em que torcedores do time do Grêmio, de Porto Alegre, insultaram um goleiro de raça negra chamando-o de “macaco” durante o jogo.
No caso, o Ministério Público entrou com uma ação no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), que aceitou a denúncia por injúria racial, aplicando, na ocasião, medidas cautelares como o impedimento dos acusados de frequentar estádios. Após um acordo no Foro Central de Porto Alegre, a ação por injúria foi suspensa.
Já o crime de racismo, previsto na Lei n. 7.716/1989, implica conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou coletividade e, geralmente, refere-se a crimes mais amplos. Nesses casos, cabe ao Ministério Público a legitimidade para processar o ofensor.
A lei enquadra uma série de situações como crime de racismo, por exemplo, recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou às escadas de acesso, negar ou obstar emprego em empresa privada, entre outros.
De acordo com o promotor de Justiça do TJDFT, Thiago André Pierobom de Ávila, são mais comuns no país os casos enquadrados no artigo 20 da legislação, que consiste em “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
A 1ª Turma Criminal do TJDFT manteve uma condenação por crime de racismo de um homem que se autodenomina skinhead e que fez apologia ao racismo contra judeus, negros e nordestinos em página da internet.
De acordo com os desembargadores, que mantiveram a condenação à unanimidade, “o crime de racismo é mais amplo do que o de injúria qualificada, pois visa atingir uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. No caso, o conjunto probatório ampara a condenação do acusado por racismo”.
Ao contrário da injúria racial, cuja prescrição é de oito anos – antes de transitar em julgado a sentença final –, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível, conforme determina o artigo 5º da Constituição Federal.
Apesar disso, de acordo com o promotor Pierobom, na prática é difícil comprovar o crime quando os vestígios já desapareceram e a memória enfraqueceu.
O promotor lembra de um caso em que foi possível reconhecer o crime de racismo após décadas do ato praticado, o HC 82.424, julgado em 2003[4] no STF, em que a corte manteve a condenação de um livro publicado com ideias preconceituosas e discriminatórias contra a comunidade judaica, considerando, por exemplo, que o holocausto não teria existido.
A denúncia contra o livro foi feita em 1986 por movimentos populares de combate ao racismo e o STF manteve a condenação por considerar o crime de racismo imprescritível.
O julgamento do STJ estabelece um precedente importante na interpretação das leis antirracistas no Brasil. Ao afastar a tese de “racismo reverso”, a Corte reafirmou que a legislação não pode ser descontextualizada, devendo sempre considerar o papel histórico do racismo na exclusão de grupos racializados[5].
Registre-se que o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei 12.288/2010 já comemorou quatorze anos e é importante para o enfrentamento de práticas discriminatórias. Infelizmente, nosso país é racista, especialmente, quanto à população negra.
Apesar de que a economia, a política, as instituições e a própria história brasileira foi e ainda continua sendo construída pelo sangue e esforço de pessoas negras. Como bem ensina a filósofa Angela Davis: “numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”.
Referências
ESTANTE VIRTUAL. Holocausto Judeu ou Alemão? Nos bastidores da mentira do século. Disponível em:https://www.estantevirtual.com.br/livros/s-e-castan/holocausto-judeu-ou-alemao/2506723056
Habeas Corpus 929002/AL Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=HC%20929002
LEITE, Gisele. A injustiça do racismo. Disponível em: https://letrasjuridicas.com.br/articulista/gisele-leite-articulista/artigo/a-injustica-do-racismo
STF nega HC a editor de livros condenado por racismo contra judeus. Site do STF, 2014. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=61291c
STJ. Racismo reverso: STJ afasta injúria racial contra pessoa branca em razão da cor da pele. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/04022025-Racismo-reverso-STJ-afasta-injuria-racial-contra-pessoa-branca-em-razao-da-cor-da-pele.aspx
[1] Racismo reverso é um conceito que se refere a supostos atos de discriminação praticados por grupos minoritários contra a maioria. No entanto, a ideia de racismo reverso é considerada negacionista e não tem bases para sustentação. Argumentos contra o racismo reverso: Não há histórico de construção social contra pessoas não-negras; não se pode igualar ofensas individuais e opressões sistêmicas; O racismo reverso nega os aspectos históricos das relações raciais; O racismo reverso busca legitimar as discriminações contra pessoas brancas; O racismo é um fenômeno estrutural que historicamente afeta grupos minoritários.
[2] O STJ decidiu, por unanimidade, rejeitar a tese do “racismo reverso”. A decisão foi tomada no caso de um homem branco que acusou um homem negro de injúria racial.
Como foi a decisão do STJ? O STJ entendeu que a injúria racial não se aplica a ofensas dirigidas a pessoas brancas por sua condição racial. O STJ decidiu que o crime de injúria simples deve ser aplicado a essas situações. O STJ considerou que a população branca não pode ser considerada uma minoria. O STJ considerou que a legislação sobre injúria racial foi criada para proteger grupos historicamente discriminados.
[3] A Lei nº 7.716/1989, também conhecida como Lei do Racismo, define os crimes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Principais pontos da lei: Proíbe a discriminação no ambiente de trabalho; Proíbe a negação de acesso à educação; Proíbe a discriminação no acesso a cargos públicos; Proíbe a discriminação no acesso a estabelecimentos comerciais; Proíbe a discriminação no acesso a hospedagem; Proíbe a discriminação no acesso a transportes públicos; Proíbe a discriminação no acesso a serviços das Forças Armadas; Proíbe a discriminação no casamento ou convivência familiar e social. Penas: As penas previstas para os crimes na Lei 7.716/89 são de reclusão, não havendo a previsão de detenção A conduta de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito racial é punida com reclusão de um a três anos e multa.
[4] O caso Ellwanger é considerado uma das decisões mais importantes do STF, especialmente por definir os limites da liberdade de expressão. O réu foi condenado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias. O réu foi acusado de ter publicado o livro “Holocausto Judeu ou Alemão? Nos bastidores da mentira do século”. Decisão do STF: O STF negou o habeas corpus, mantendo a condenação do réu. A pena privativa de liberdade foi substituída por prestação de serviço à comunidade e uma multa de 20 salários-mínimos para uma associação beneficente cristã. A decisão do STF definiu que a liberdade de expressão não é um valor absoluto, quando confrontada com a imunidade parlamentar.
[5]A Lei Federal 14.519/23 institui o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé. A data de celebração é 21 de março.