Por um direito fundamental à desconexão do trabalho em feriados: o bom caminho da Portaria MTE nº 3.665/2023

Guilherme Guimarães Feliciano

Professor associado III da USP e juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté/SP. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) entre 2017 e 2019. Conselheiro Nacional de Justiça (2024-2026).

 

A Portaria MTE nº 3.665/2023, que entrará em vigor em 1º/7/25, promove mudanças substanciais nas normas que regem o trabalho em domingos e feriados, notadamente no segmento do comércio e dos serviços. Revogando autorizações permanentes previstas na Portaria nº 671/2021, estatui-se que o labor em dias feriados se submeta à prévia negociação coletiva, o que imprime a esse arranjo laboral as notas da temporariedade, da revisão periódica e da consensualidade coletiva. Nisso, a propósito, recupera o império da legalidade em sentido formal – que não pode ser contrastada por portarias administrativas, tanto menos em desfavor do trabalhador –, à vista do que já dispunha a Lei nº 10.101/2000 e sua alteração pela Lei nº 11.603/2007 (art. 6º-A). Eis o primeiro aspecto positivo da Portaria 3.655/2023.

De outra parte, a normativa fortalece a segurança jurídica e a valorização do diálogo social, uma vez que as condições para o trabalho em feriados deixam de ser unilateralmente impostas e passam a ser objeto de negociação entre empregadores e sindicatos. Prestigia-se, como deve ser, a autonomia privada coletiva, reforçando o papel constitucional dos sindicatos na defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria (CF, art. 8º, III).

Entre os setores impactados estão supermercados, açougues, farmácias, lojas de veículos e diversos outros ramos do comércio varejista (peixes, pão e biscoitos, frutas e verduras, aves e ovos, artigos regionais em estâncias hidrominerais etc.). A exigência de convenções ou acordos coletivos de trabalho impõe novos desafios, sobretudo para as pequenas e médias empresas, que poderão inicialmente enfrentar dificuldades operacionais e/ou financeiras para viabilizar negociações sindicais; aqui, aliás, assenta-se um dos pontos mais recorrentes de crítica. Trata-se, porém, de uma oportunidade: tais empresas estão agora instadas à adoção de práticas laborais mais equitativas, que vivifiquem a negociação em âmbito coletivo e reconheçam a importância do descanso como aspecto indissociável da dignidade do trabalhador.

Os críticos apontam, outrossim, os riscos de desabastecimento em setores essenciais. Há que ver, todavia, que aportaria resguarda o funcionamento dos ditos “serviços essenciais”(Lei nº 7.783/1989, art. 10) — como os postos de gasolina –  e de outros similares – como os hotéis e as feiras livres –, que permanecem autorizados a operar nos feriados, sem exigência de negociação coletiva.

Há que se destacar ainda que a Portaria nº 3.665/2023 não altera as regras sobre os sistemas de controle de ponto eletrônico da Portaria nº 671/2024 (REP-C, REP-A e REP-P), nem interfere nas normas municipais sobre funcionamento do comércio, cabendo às empresas dedicarem atenção às legislações locais.

Por fim, voltando à questão do trabalho (e do descanso), merecem reflexão as palavras de Bergoglioao ensejo da “Laudato Si’”: não à toa, a tradição bíblica “estabelece claramente que esta reabilitação[dos homens] implica a redescoberta e o respeito dos ritmos inscritos na natureza pela mão do Criador. Isto está patente, por exemplo, na lei do Shabbath. No sétimo dia, Deus descansou de todas as suas obras. […] O desenvolvimento desta legislação procurou assegurar o equilíbrio e a equidade nas relações do ser humano com os outros e com a terra onde vivia e trabalhava”. E, em linha similar, Foucault reconheceu, ao tratar do biopoder nas relações de trabalho, os mecanismos pelos quais o trabalhador obriga-se a alienar uma parte da sua vida e do seu tempo para o empregador. Um cristão, outro ateu; e, de ambos, a mesma mensagem: é preciso limitar convictamente a apropriação econômica do tempo de vida do outro.

Esses são, afinal, os luminosos nortes — de valorização da pessoa humana em face da máquina do consumo e da reabilitação da pessoa trabalhadora com a sua própria natureza biológica — para os quais caminha a Portaria nº 3.665/2023. Não é perfeita. Mas anda bem.