PL do Aborto

Gisele Leite

Professora universitária aposentada. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Presidente da Seccional RJ da ABRADE. Pesquisadora-chefe do INPJ. Trinta e sete obras jurídicas publicadas. Articulista e colunistas dos principais sites jurídicos.

 

No dia 12 de junho de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, conhecido como PL da Gravidez Infantil ou PL do Aborto. A proposta equipara o aborto legal de gestação acima de vinte e duas semanas que já era direito previsto no Código Penal  desde 1940 em caso de estupro, risco à pessoa gestante ou anencefalia equiparando ao crime de homicídio.

A referida matéria fora pautada sem prévio aviso pelo Presidente da Casa legislativa, Arthur Lira que fez votação relâmpago em exatos vinte e três segundo e, ainda, considerou a urgência aprovada em votação simbólica, isto é, sem registro de voto de cada deputado no painel eletrônico.  Em face da urgência o PL poderá ser votado diretamente no Plenário da Câmara sem prévia análise das comissões relacionadas com a temática do projeto.

Recordemos que o  direito ao aborto é previsto em lei no Brasil desde 1940. Segundo os artigos 124 a 128 do Código Penal, mulheres podem interromper uma gravidez sem que isso seja considerado crime em três casos: se a gestação oferece risco à vida da gestante; se a gravidez é resultado de violência sexual; se o feto for diagnosticado com anencefalia (má formação do cérebro).

Frise-se que  não há qualquer limite de tempo de gestação para que o aborto legal seja realizado nos casos de estupro ou de risco à vida de quem gesta. Desde 2012, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), gestantes também têm a liberdade para decidir pela interrupção da gravidez caso seja constatada, por meio de laudo médico, anencefalia (má formação do cérebro) sem que haja um tempo limite para a realização do procedimento.

Em 2022, o Ministério da Saúde, durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL),  recomendou em uma nota técnica que o aborto legal fosse realizado só até 21 (vinte e uma) semanas e 6 (seis)  dias de gestação. Essa recomendação, contudo, não tinha força de lei, ou seja, não alterou a legislação até então vigente no Brasil.

Já em 21 de março deste ano, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução (Resolução CFM Nº 2.378) proibindo médicos de realizarem a técnica clínica de assistolia fetal em gestações com mais de vinte e duas semanas nos casos de aborto legal já previstos em lei. A norma, contudo, foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio deste ano.

A decisão, na época, motivou uma onda de conteúdos desinformativos, com publicações que distorciam ou deixavam de fora explicações técnicas sobre os procedimentos com o intuito de manipular a opinião pública.

Cumpre pontuar que tanto a recomendação de 2022 quanto a resolução do CFM (suspensa pelo STF) não têm validade de lei, ou seja, não alteraram o que está em vigor desde 1940 no Código Penal.

O PL 1904/2024 foi apresentado na Câmara em 17 de maio deste ano pelo deputado (da bancada evangélica) Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros trinta e dois  parlamentares, a maioria homens. Detalhe: dos 33 proponentes, apenas 11 são mulheres.(grifo meu).

O projeto propõe um limite de até 22 (vinte e duas)semanas para a realização de aborto nos casos de estupro, feto anencéfalo ou risco à gestante. Na prática, isso muda a regra vigente, uma vez que a lei atual não prevê limite da idade gestacional para realizar o procedimento nestes casos.

Além dessa mudança, o PL 1904 prevê uma pena que pode chegar a até vinte anos de prisão tanto para gestantes quanto para quem realiza o aborto após 22 semanas de gestação, equiparando a punição aos crimes de homicídio simples (artigo 121 do Código Penal).

Essa penalidade, entretanto, é maior do que a prevista para o estuprador. Segundo o artigo 213 do Código Penal, a pena para quem comete esse crime é de seis a dez anos de prisão.

No Brasil, o dado nacional mais recente disponível é de 2022, quando foram registrados quase 75 (setenta e cinco) mil estupros — número recorde desde 2011, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. Resulta na média de 205 (duzentos e cinco) estupros por dia ou de um abuso a cada sete minutos.

A maioria das vítimas é criança ou adolescente. Segundo a edição 2022 do Anuário, com dados de 2020 a 2021, pelo menos 61,3% dos estupros registrados no país foram cometidos contra meninas menores de 13 (treze)  anos. Trata-se de um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estimou que apenas 8,5% dos crimes de estupro são reportados à polícia e 4,2%, ao sistema de saúde, ou seja, a quantidade de crimes do tipo é ainda maior.

Caso o projeto de lei seja aprovado, mulheres que sofrem estupro e que porventura engravidem dos criminosos poderão ser presas caso optem por não seguir com a gestação após 22 semanas de gravidez em caso de uma gestação que oferece risco à vida da mulher ou caso o feto tenha sido diagnosticado com má formação do cérebro.

Afinal, a proposta estabelece que “as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”, sem fazer qualquer distinção entre crianças e pessoas adultas.

Em nota, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) informou que a proposta “é inconstitucional, viola o Estatuto da Criança e do Adolescente e contraria normas internacionais que o Brasil é signatário”.

Se o PL seja aprovado pelos deputados federais, ele será encaminhado para análise do Senado. Se os senadores mudarem algo na proposta antes de aprovarem, o texto terá de voltar para nova análise na Câmara.

Caso o Senado dê aval à medida sem nenhuma mudança no texto aprovado pela Câmara, o projeto segue para sanção do  atual Presidente da República, que pode sancioná-lo integralmente, vetar alguns trechos ou vetá-lo integralmente.

Em caso de vetos de Lula, a proposta voltará para o Congresso, que pode, em nova votação, acatar a decisão presidencial ou derrubar todos os vetos e promulgar a lei — que, então, passará a valer em todo o país.

Ressalte-se que crianças que foram estupradas e engravidam tendem a demorar mais para procurar ajuda médica — e, quando conseguem meios legais para realizar o aborto, já estão com mais de vinte semanas de gestação. Além disso, a maioria dos casos de abusos de crianças costuma ocorrer dentro de suas casas e por pessoas conhecidas e até por familiares.

A ONG Conectas e outras vinte e duas organizações e coletivos entraram com um apelo urgente na ONU e na Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra o projeto de lei que equipara aborto a homicídio.

O Ministério da Saúde tenha que publicar diretrizes nacionais que reforcem a falta de limites gestacionais para o aborto legal, de acordo com a Lei Penal Brasileira, seguindo também as normas da OMS.

“Essa equiparação remonta a leis da Idade Média e intensifica um sistema de proibição socialmente injusto. A criminalização severa do aborto não reduz a sua ocorrência, mas empurra as mulheres para procedimentos clandestinos”, afirma a presidente da OAB-SP, Patrícia Vanzolini.

Enfim, qual é a opinião da cidadania brasileira?