Juizados especiais federais: desafio ao acesso à justiça e o processo justo nas lides previdenciárias

Andreia Lima Cerqueira de Hamburgo

Advogada/OAB-BA, Bacharel em História, Pós-graduada em Direito Administrativo pelo CEJAS, Pós-graduada em Direito Previdenciário pela Especcial Jus, Diretora Científica do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário Brasileiro /IBDP

 

 

Resumo: O presente artigo traz como problema o questionamento se os operadores do direito estão preparados para os desafios processuais atinente às lides previdenciárias e suas idiossincrasias nos Juizados Especiais Federais. Em vista disso, utilizou-se das referências bibliográficas para analisar as dificuldades intrínsecas no rito sumaríssimo. Busca sinalizar a necessidade das adequações do Código de Processual Civil ao Direito Processual Previdenciário frente a relativização e fungibilidade nos recônditos processuais. Analisa a acepção do acesso à justiça e a promoção do processo justo. E por fim, discorre sobre a perspectiva e o protocolo de gênero no âmbito dos Juizados Especiais Federais, sobretudo atinente a segurada especial/trabalhadora rural, para em caso de ausência probatória seja adotado o Tema 269 do STJ.

Palavras chaves: Juizados Especiais Federais; Acesso à Justiça; protocolo de gênero.

SUMÁRIO: 1. Notas introdutórias; 2. Juizados Especiais Federais; 3. Acesso à Justiça / Lide previdenciária e processo justo. 4. Perspectiva de gênero e protocolo de gênero nos JEF’s5. Considerações Finais; 6. Referências.

 

  1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

Mergulhar no universo dos Juizados Especiais Federais brota um questionamento a lutar e pertinente: será que os operadores do direito estão preparados para o modelo jurisdicional do rito sumaríssimo atinente as lides previdenciárias ou há uma forte tendência em ordinarizar o procedimento?

Supõe-se que a aplicação do excesso de formalismo dos mecanismos tradicionais, colide com a proposta de processar e julgar lides previdenciárias de natureza alimentar pautado na égide da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade. Palmilhar no cenário dos Juizados Especiais Federais descortina os desafios que devem ser enfrentados pelos personagens da trama processual, seja pela expectativa da efetividade ao acesso à justiça, do processo justo, assim como o tratamento ao direito prioritário a prova, que deve ser diferenciado, por ser um ponto crítico da tramitação das ações previdenciárias, sobretudo sobre benefícios por incapacidade (LAZZARI, 2014) e dos benefícios rurais sob a perspectiva de gênero.

Espelhar o entendimento do doutrinador Fernando Rubin[1]compreende-se que relativizar o núcleo duro do processo justo no rito sumaríssimo devido as limitações impostas pela lei: ausência de relatório, redução de espaço da produção da prova e da interposição de recursos colide com a aplicação do efetivo contraditório e da fundamentação das decisões judiciais banalizando o comando do processo constitucional.

Ademais, segue aduzindo sobre a realidade paradoxal dos Juizados Especiais Federais em se amoldar num rito com moldura legislativa “rasa”, porém não menos complexa, contudo, desprovidos de recursos como os quais: Agravo de instrumento, Recurso Adesivo, Recurso Especial e também Ação Rescisória, no entanto, com entregas jurisdicionais qualificadas. Essa preocupação é amplificada pelas demandas orbitarem em causas de caráter alimentar sob o manto do princípio da dignidade humana e Direitos Fundamentais.

Nessa toada nasceu o interesse pela pesquisa em prol de observar os pontos críticos dos Juizados Especiais Federais, pois apesar da Lei 10.259/2001 estar em vigor a mais de duas décadas e já ter sofrido modificações no decorrer nos anos, ainda há muito que se ajustar a ineficiência do CPC/2015 às ações previdenciárias, cuja premissa é a efetivação do processo justo. A finalidade deste artigo é demonstrar que o caminho do processo justo no rito sumaríssimo ainda está em construção, sobretudo na seara previdenciária onde acomoda-se dois direitos constitucionais fundamentais: produção de prova lícita e direito a previdência social.

No decorrer do artigo será apresentado a origem dos Juizados Especiais Federal, a importância do acesso à justiça, assim como a lide previdenciária desafiadora para construção do processo justo. E ao final a necessidade da aplicabilidade do protocolo sobre a Perspectiva de gênero deve ser aplicado nos JEF’s.

A metodologia adotada foi a pesquisa teórica mediante análise de bibliografia com a finalidade de proporcionar maior familiaridade ao problema do presente artigo em busca da construção do processo previdenciário justo, sobretudo quando se tratar de bem jurídico com natureza alimentar junto aos Juizados Especiais Federais.

A presente pesquisa irá delinear alguns pontos críticos enfrentados pelos operadores do direito, quanto as limitações processuais no rito sumaríssimo, de modo trazer à baila a importância do tema, sobretudo por se tratar de verbas de natureza alimentar.

  1. JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS E SUAS IDIOSSINCRASIAS

Na opinião abalizada do Professor Frederico Amado[2]os Juizados Especiais Federais regidos pela lei 10.259/2001, é na verdade um microssistema com aplicação supletiva da Lei 9099/95 e do CPC, conforme enunciado 151 do FONAJEF. O CPC/2015 só é aplicável nos Juizados Especiais naquilo que não contrariar os seus princípios norteadores e a sua legislação específica (Aprovado no XII FONAJEF).

Segue aduzindo que mesmo com o advento do CPC/2015, a conciliação e mediação permanecem regidas pela lei 10.259/2001 e 9099/95. Assim como prescreve o Enunciado 153 do FONAJEF. A regra do art. 489, parágrafo primeiro, do NCPC deve ser mitigada nos juizados por força da primazia dos princípios da simplicidade e informalidade que regem o JEF (Aprovado no XII FONAJEF).

Ademais, aduz que o art. 46 da Lei 9099/95 não foi revogado pelo Novo CPC, como dita o enunciado 154 do FONAJEF. O art. 46, da Lei 9099/1995, não foi revogado pelo novo CPC (Aprovado no XII FONAJEF).

Chama atenção do Enunciado 160 do FONAJEF, de modo que não causa nulidade a não aplicação do art. 10 do CPC e do art. 487, parágrafo único em razão dos princípios que rege esse microssistema. Não causa nulidade a não-aplicação do art. 10 do NCPC e do art. 487, parágrafo único, do NCPC nos juizados, tendo em vista os princípios da celeridade e informalidade (Aprovado no XII FONAJEF).

Compreender a lógica processual de forma sistêmica no âmbito dos Juizados Especiais Federais é de suma importância para entender-se as limitações e desafios enfrentado no curso do processo previdenciário para efetivar o processo justo.

É sabido que em razão da competência absoluta para fixar o valor da causa até 60 salários mínimos, onde o procedimento é regido pelos princípios da oralidade, celeridade, informalidade, não torna o procedimento menos importante ou menos complexo, haja vista não pode olvidar que as maiores demandas são previdenciárias tratando-se verba alimentar, sobretudo benefícios por incapacidades que por si só possuem suas complexidades, conforme relatório do CNJ: Segundo o relatório “Justiça em Números” publicado em 2020 pelo Conselho Nacional da Justiça, em 2019 houve uma entrada de 5.201.412 milhões de casos novos na Justiça Federal; destes, 3.003.387 milhões foram nos Juizados Especiais Federais. Chama atenção o fato de que os assuntos mais demandados nos JEFs diz respeito às causas previdenciárias especialmente referentes a benefícios em espécie/auxílio-doença previdenciário e aposentadoria por invalidez. Sendo assim, nota-se que nos JEFs existe a preponderância das ações contra instituições do Estado, especialmente o INSS. Esse tipo de ação judicial presente nos juizados pode representar um indicador do tipo de acesso à justiça caracterizado por demandas formuladas por cidadãos e cidadãs individualmente, contra burocracias governamentais, representadas por prepostos em muitos casos com formação em Direito e conhecedores do campo de disputa.[3]

Nesse sentido, sem pretensão de esgotar o diálogo processual, contudo trazer à baila os desafios processuais nos recônditos dos Juizados Especiais que se agiganta quando o assunto também transita sobre uniformização das decisões.

Daí no expressivo dizer do professor Fernando Rubin[4] o Código de Processo Civil de 2015 consolidou o instituto dos precedentes com reflexos no sistema dos Juizados porque estes não são formados apenas no âmbito dos Tribunais Superiores, conforme CPC, art. 927, III. Desta maneira, os julgados em recurso especial e extraordinário em repetitivo vinculam o microssistema dos Juizados promovendo segurança jurídica aos jurisdicionados.

Não se pode perder de vista que nos âmbitos dos Juizados Especiais Federais, que é o objeto do presente artigo, existem divergências que serão compatibilizadas através dos incidentes: Regional, quando houver divergência entre Turmas da mesma região e será julgado pela Turma Regional de Uniformização; Nacional, quando fundado em decisões de Turmas diferentes, e/ou contrária a Súmula ou jurisprudência pacificada pelo STJ que será julgada pela Turma Nacional de Uniformização; Pedido de Uniformização de Interpretação de Lei dirigido ao STJ com finalidade de corrigir as distorções quando a orientação sobre questões de direito material, divergência de súmula ou jurisprudência do STJ for acolhida pela Turma de Uniformização.

Nesse sentido, o relatório final do CNJ demonstra a existência de conflitos de decisões em sede de Juizados Especiais Federais: Com base no desenvolvimento de uma pesquisa empírica fundamentada em análises de decisões, o autor observou a necessidade do mesmo processo ser julgado em mais de uma oportunidade pelos órgãos revisores dos juizados, diante da sucessão de decisões conflitantes sobre o mesmo tema por parte da turma regional e nacional de uniformização, STJ e STF ou ainda da aplicação equivocada do sistema de precedentes pelos(as) juízes(as) que compromete a duração razoável do processo (PINHO, 2021, p. 140)[5].

Impende observar a importância da interpretação processual deve ocorrer de forma sistêmica para efetivar o processo justo, bem como garantir segurança jurídica. Haja vista após percorrer os caminhos processuais dos JEF’s para dirimir as divergências, mesmo sem a possibilidade de interposição de Recurso Especial, mas com possibilidade de interpor o Recurso Extraordinário, demonstra a aplicabilidade dos precedentes consubstanciado pelo CPC no microssistema dos Juizados Especiais, seja: Estadual / Lei 9099/1995, Federal / Lei 10.259 ou da Fazenda Pública / Lei 12.153/2009.

  1. ACESSO À JUSTIÇA/ LIDE PREVIDENCIÁRIA E PROCESSO JUSTO

O marco histórico do acesso à justiça de forma mais contundente ocorreu em 1971 na cidade de Florença na Itália, onde inaugurou a preocupação das garantias fundamentais em consonância com o processo civil, (PINHO, 2019).

O acesso à justiça como dizia (WATANABE, 2013)[6] não se confunde com acesso ao Judiciário, é uma compreensão mais ampla à medida que o objetivo transpassa as ondas inauguradas por (Cappelletti e Garth, 1988) quanto a assistência aos pobres, representar os interesses difusos e da representação em juízo numa nova concepção de justiça pautada e delineada como um aspecto do Estado de Direito e do Direito Fundamental.

No entanto, o acesso à justiça deve representar o efetivo acesso à ordem jurídica justa. Contudo, como vislumbrar esse acesso à justiça diante de inúmeros paradoxos processuais que se curvam aos procedimentos dos Juizados Especiais, apenas por estar pautado nos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade? É possível estender esse acesso à justiça as roupagens extrajudiciais?

Com o advento do CPC/2015 nova perspectiva processual é inaugurada com o art.3que preconiza outras formas de composição, bem como o sistema multiportas como forma de solução de conflitos. Nessa toada, o fenômeno da desjudicialização amplia e ressignifica o acesso à justiça à medida que evidencia que a jurisdição não é exclusividade estatal, por isso que acesso à justiça não se confunde com acesso ao judiciário, pois o objetivo maior é a pacificação social.

Enquanto esse fenômeno da desjudicialização não se adequa a realidade das lides previdenciárias, o acesso à justiça derivado do devido processo legal exige-se, conforme a opinião abalizada de (SAVARIS, 2022) que a justiça deve ser: acessível aos carentes, ágil na proteção dos direitos individuais ou difusos, e eficaz para tornar a realidade, no plano dos fatos, as composições que resultam da atividade jurisdicional.[7]

Segue aduzindo que delinear um processo justo para lide previdenciária é compreender a necessidade do direito processual previdenciário em detrimento do civil, pois a natureza do litígio é incompatível com o processo civil clássico, haja vista trata-se de natureza alimentar bem como de relevância social fundamental.

Mister se faz ressaltar que o direito processual previdenciário está em construção, identificar as peculiaridades e inconsistências da aplicabilidade do processo civil permite que reconheça as limitações enfrentadas pelos operadores do direito para efetivar o processo justo, de modo que é preciso apontar possíveis soluções para as inadequações da roupagem imperial e individualista do código de ritos em prol da pacificação social.

  1. PERSPECTIVA DE GÊNERO E PROTOCOLO DE GÊNERO NOS JEF’S

Frisa-se que além da dificuldade em adequação processual do CPC ao Processo Previdenciário, a mentalidade dos operadores do direito também é um óbice ao processo previdenciário justo. A ordem simbólica da estrutura patriarcal, misógina, sexista plasmada no inconsciente social e inevitavelmente a subjetividade de quem julga, reflete em decisões previdenciárias eivadas de preconceitos naturalizados, os quais precisam ser ressignificados em prol da pacificação social.

Entretanto, em observância a Agenda 2030 da ONU recomenda-se que se cumpra os seguintes objetivos de desenvolvimento sustentável no Brasil / Igualdade de gênero, conforme objetivo 5: Objetivo 5. Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas 5.1 Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte 5.2 Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos 5.3 Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas 5.4 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais 5.5 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública 5.6 Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, como acordado em conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de suas conferências de revisão 5.a Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso a propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços financeiros, herança e os recursos naturais, de acordo com as leis nacionais 5.b Aumentar o uso de tecnologias de base, em particular as tecnologias de informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres 5.c Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis

No entanto, como mecanismo para corrigir distorções das decisões onde as mulheres, sobretudo as rurais ainda são vistas em pleno século XXI como subordinadas aos seus esposos/companheiros, os Magistrados (as) devem realizar os julgamentos conforme Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero.

Convém ressaltar que a aposentadoria rural é o calcanhar de aquiles, tanto da via administrativa quanto judicial, sobretudo pela margem de subjetividade no reconhecimento do direito, assim entende o relatório do Conselho Nacional de Justiça: Com relação à aposentadoria rural, a norma diz que o segurado especial não precisa comprovar recolhimentos previdenciários caso não comercialize sua produção, mas sim comprovar a atividade rural, por meio de início de prova material, em que pese as características desse público e a necessidade de requisitos factíveis para que essa parcela da população tenha acesso ao benefício de direito. Tal forma de acesso ao benefício rural pode oferecer margem à subjetividade e à fraude na concessão do benefício. Esse fato poderia dificultar o reconhecimento do direito do segurado pelo INSS, promovendo excessiva e crescente judicialização dessa modalidade de benefício.[8]

Salta os olhos que a decisão prolatada em 2017 no processo 000473886.2016.4.01.3304 no TRF 1º Região registra flagrante violação ao Direito Prioritário a Prova, pois o MM Juízo não reconheceu os documentos (auto declaração de atividade rural, ficha de filiação de sindicato rural, comprovantes de pagamentos efetuados em favor do sindicato rural, ficha de matrícula dos filhos e declaração de posse da unidade rural) como indício de prova material, indeferindo a produção de prova testemunhal.

Fundamentação consubstanciada em razão da Autora apresentar aos autos informações que o cônjuge goza do benefício da aposentadoria, de forma a descaracterizar a qualidade da autora de segurada especial.

Outrossim, o Acordão do recurso processo nº 000473886.2016.4.01.3304 foi fundamentado no mesmo sentido da r. sentença vergastada, com entendimento que razão não assiste a Autora porque seu marido é aposentado por tempo de contribuição.  Inicialmente, afasto a preliminar de cerceamento do direito de defesa, ante a ausência da realização de audiência de instrução e julgamento, tendo em vista que os elementos juntados aos autos comprovam, de forma inequívoca, que a parte autora, malgrado tenha relação com o mundo rural, não exerceu a atividade rural em regime de economia familiar, de modo que lídima a recusa da autarquia em conceder-lhe a aposentadoria por idade, nos termos da Lei nº 8.213/91. Do exposto, revela-se prescindível a realização de audiência de instrução e julgamento, não constituindo, portanto, a sua não realização, cerceamento do direito de defesa. 3. Registre-se, por oportuno, que o entendimento ora esposado não se encontra em contradição aos inúmeros julgados de minha lavra em que reputava indispensável a realização de audiência de instrução e julgamento, tendo em vista que naqueles casos haviam indícios mínimos de exercício de atividade campensina, enquanto nestes autos há contraprova robusta que deslegitima a aposentadoria rural requerida (percepção de pensão por morte de natureza urbana superior ao salário mínimo), daí porque desnecessária a realização da mencionada audiência, que em nada modificaria o panorama ora delineado. 4. Com efeito, não obstante se verifique a presença de razoável início de prova material, emerge dos autos que o marido da parte autora recebe aposentadoria por tempo de contribuição em valor superior ao salário-mínimo (fls.75/78), denotando que a suposta atividade rural exercida pelo demandante é de importância secundária para o seu sustento, o que afasta sua caracterização de segurada especial, em regime de economia familiar. Grifo nosso

Desta forma, sobre as decisões verifica-se a limitação dos recursos e atividade processual em sede de Juizados Especiais Federais faz florescer alguns questionamentos sobre espécies probatórias, assim como limitação dos recursos, de modo a comprometer a efetiva entrega jurisdicional a segurada hipossuficiente.

Ademias, o protocolo para julgamento por perspectiva de gênero foi de 2021, enquanto que as decisões analisadas do caso concreto foram de 2017, ou seja, sem consonância com a percepção do prejuízo que o patriarcado enraizado e naturalizado do homem como provedor promove quando não se permite a prova testemunhal, chocando com o direito prioritário à prova, estrangulando a dignidade da família rural como defende (SAVARIS, 2009).

Assim, essa preocupação é uma das vertentes do relatório final do CNJ: Contribui, ainda, para reforçar essa dificuldade a presença de termos vagos e indeterminados, tais como regime de economia familiar, trabalho indispensável à subsistência, mútua dependência e colaboração. Esses termos deixam em aberto ao operador do direito, seja a autoridade administrativa que aprecia os pedidos de concessão de benefícios, seja o juiz no caso de uma ação judicial, um exercício maior de discricionariedade na apreciação das provas trazidas pelo segurado. A ausência de critérios objetivos e o necessário exercício de um juízo de valor a respeito da modalidade de trabalho desenvolvida pelo produtor rural em nada contribui para a proteção previdenciária da mulher trabalhadora rural. Isso ocorre porque o poder simbólico, que parte do paradigma do trabalho masculino para atribuir valor ao trabalho feminino, acaba operando na lógica da decisão. Mesmo que a mulher dedique a mesma quantidade de horas de trabalho rural quanto o homem, ou que seu trabalho seja tão duro quanto o do companheiro ou familiar, a sua comprovação depende de um esforço probatório qualificado, o qual decorre da presunção derivada do senso comum, de que o homem é o provedor, e de que cabe à mulher uma função meramente “auxiliar”.[9]

A sentença e o Acórdão em comento trazem a necessidade para que ocorra urgente mudança de mentalidade dos julgadores quanto a perspectiva de gênero quando, sobretudo se tratar de segurada especial /trabalhadora rural.

Contudo, imperioso chamar a atenção que a jurisprudência da TNU já é pacífica quando um dos integrantes do grupo familiar desempenha atividade urbana, pois, não é condição sine qua non para descaracterizar a qualidade de segurado especial, conforme Súmula 41: A circunstância de um dos integrantes do núcleo familiar desempenhar atividade urbana não implica, por si só, a descaracterização do trabalhador rural como segurado especial, condição que deve ser analisada no caso concreto.

Registre-se ainda o entendimento sedimentado que a Sumula 14 da TNU não exige que a prova material para concessão da aposentadoria rural por idade corresponda a todo período equivalente a carência. Para a concessão de aposentadoria rural por idade, não se exige que o início de prova material corresponda a todo o período equivalente à carência do benefício.

Noutro giro, no dizer sempre expressivo do Professor Savaris[10]também em regra geral os documentos que indicam atividade rural de um componente do grupo familiar podem ser aproveitado pelo outro. Assim como a prova também pode ser demonstrada através dos vestígios deixado pela atividade campesina: calosidade, marcas na pele do sol, lesões corporais, e etc.).

A vista do até aqui exposto, em razão da natureza alimentar das lides previdenciárias, bem como pela dificuldade dos segurados em produzir as provas, muitas vezes sendo até diabólica, os processos devem ser extintos sem resolução do mérito, conforme tese firmada no Tema 629 do STJ, quando o Juízo entender por inexistência de conteúdo probatório: A ausência de conteúdo probatório eficaz a instruir a inicial, conforme determina o art. 283 do CPC, implica a carência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido do processo, impondo sua extinção sem o julgamento do mérito (art. 267, IV do CPC) e a consequente possibilidade de o autor intentar novamente a ação (art. 268 do CPC), caso reúna os elementos necessários à tal iniciativa.

Destarte, imperioso finalizar compreendendo os desafios enfrentados pelo Juizados Especiais, que por mais que tenham duas décadas da implantação, ainda se encontram em construção para garantir com efetividade o acesso à justiça em seu sentido pleno, para contemplar o processo digno e da justa cidadania, que vai além do simples acesso ao judiciário.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Revisitar o problema inicial do artigo em comento quanto aos desafios enfrentados pelos operadores do direito no Rito Sumaríssimo faz analisar que a moldura legislativa está amparada apenas para fixação de competência em detrimento da complexidade da causa.

Não se pode olvidar que os Juizados Especiais Federais fazem parte de um microssistema, cuja interpretação sistêmica deve ser deve ser a todo momento verificada em prol de não cometer equívocos processuais, haja vista esse rito possui suas idiossincrasias para promover a uniformização e aplicabilidade de precedentes.

Assinale, ainda, que a acepção ao acesso à justiça transcende o acesso ao judiciário quando denota aspecto do Estado de Direito e do Direito Fundamental, ou seja, objetiva efetivar o processo justo e a famigerada pacificação social. Demais disso, compreender a ineficiência do processo civil ao direito processual previdenciário é perceber as limitações enfrentadas pelos operadores do direito para efetivar a justiça social.

É sobremodo importante pontuar sobre além da dificuldade processual em adequar o CPC as lides previdenciárias, possui também a ordem simbólica acoplada as mentalidades dos julgadores causando óbices a pacificação social, sobretudo quando se trata de segurada especial/trabalhadora rural casada cujos maridos/companheiros são aposentados por tempo de contribuição.

Ressalta-se, por fim, que as lides previdenciárias possuem o manto do Direito Fundamental, seja pelo direito prioritário a prova, ou seja pelo direito ao benefício previdenciário. Desta maneira, independente do rito fixado pelo valor da causa deve-se preconizar o direito ao processo justo respeitando o devido processo legal.

  1. REFERÊNCIAS.

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CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. Título original: The Worldwide Movement to Make Rights Effective. A General Report

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[1] RUBIN, Fernando. A Exigência do Contraditório prévio e da fundamentação das decisões judiciais no campo social – Procedimento comum e juizados Especiais. In: Processo Judicial Previdenciário: notas especiais de acordo com o CPC, Juruá, 2022

[2] AMADO, F. Procedimento nos Juizados Especiais Federais. Curso de direito e processo previdenciário – “Monstro verde”. 15. ed. Salvador: Juspodvm, 2022

[3] Conselho Nacional de Justiça; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Juizados Especiais Federais: relatório final / Conselho Nacional de Justiça; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. – Brasília: CNJ, 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/05/relatorio-final-juizados-especiais-federais-260522.pdf. Acessado em: 26.11.2022

[4] RUBIN, Fernando. A Recepção dos Precedentes qualificados pelos Juizados Especiais Federais Previdenciários – O exemplo do Tema 177 da TNU. In: Processo Judicial Previdenciário: notas especiais de acordo com o CPC, Juruá, 2022.

[5] Conselho Nacional de Justiça; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Juizados Especiais Federais: relatório final / Conselho Nacional de Justiça; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. – Brasília: CNJ, 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/05/relatorio-final-juizados-especiais-federais-260522.pdf. Acessado em: 26.11.2022

[6] WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e Sociedade Moderna, in Participação e Processo, Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1988

[7] SAVARIS, José Antônio. A Judicialização de políticas de PROTEÇÃO Social e o Direito Fundamental. In: Direito Processual Previdenciário. 10ª Ed, Curitiba: Alteridade Editora, 2022. P. 61

[8] Conselho Nacional de Justiça; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Juizados Especiais Federais: relatório final / Conselho Nacional de Justiça; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. – Brasília: CNJ, 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/05/relatorio-final-juizados-especiais-federais-260522.pdf. Acessado em: 26.11.2022

[9] Conselho Nacional de Justiça; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Juizados Especiais Federais: relatório final / Conselho Nacional de Justiça; Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. – Brasília: CNJ, 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/05/relatorio-final-juizados-especiais-federais-260522.pdf. Acessado em: 26.11.2022

[10] SAVARIS, José Antônio. Regime Probatório Previdenciário. Direito Processual Previdenciário.10ª Ed, Curitiba: Alteridade Editora, 2022.P 415