Foro de Eleição e Ajuizamento de Ação em Juízo Aleatório: Considerações Sobre a Lei 14.879/2024

GUSTAVO FILIPE BARBOSA GARCIA

Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pós-Doutorado em Direito pela Universidade de Sevilla. Especialista em Direito pela Universidade de Sevilla. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, Titular da Cadeira 27. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Professor Universitário. Advogado.

 

 

A Lei 14.879, de 04 de junho de 2024, alterou o Código de Processo Civil para estabelecer que a eleição de foro deve guardar pertinência com o domicílio das partes ou com o local da obrigação e que o ajuizamento de ação em juízo aleatório constitui prática abusiva, passível de declinação de competência de ofício.

 

No plano do Direito material, cabe destacar que, nos contratos escritos, os contratantes podem especificar domicílio onde se exercitem e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes (art. 78 do Código Civil)[1].

 

Na esfera processual, a competência relativa pode ser modificada por meio da vontade das partes, ou seja, pela eleição de foro, em que as partes, no contrato, escolhem qual o foro competente para processar e julgar a causa a respeito do negócio jurídico celebrado[2].

 

Nos termos da Súmula 335 do STF: “É válida a cláusula de eleição do foro para os processos oriundos do contrato”.

 

Nesse sentido, as partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações (art. 63 do CPC).

 

O foro de eleição, assim, só é admitido nos casos de competência relativa. Entende-se, ainda, que a eleição de foro não prevalece sobre as regras de conexão, ou seja, a previsão de foro de eleição não impede a reunião de ações conexas (art. 55 do CPC).

 

A competência determinada em razão da matéria, da pessoa ou da função é inderrogável por convenção das partes (art. 62 do CPC). Logo, não se admite eleição de foro nas hipóteses de competência absoluta, como é o caso da competência de juízo.

 

Para as ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro de situação da coisa (art. 47 do CPC).

 

O autor pode optar pelo foro de domicílio do réu ou pelo foro de eleição se o litígio não recair sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, divisão e demarcação de terras e de nunciação de obra nova (art. 47, § 1º, do CPC).

 

Desse modo, a competência territorial é relativa se a ação fundada em direito real sobre imóvel não versar sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, divisão e demarcação de terras e de nunciação de obra nova. Nessa hipótese, o autor pode ajuizar a ação no foro de situação da coisa ou optar pelo foro de domicílio do réu ou pelo foro de eleição.

 

Como a maioria das ações reais imobiliárias diz respeito a direito de propriedade, vizinhança, servidão, divisão e demarcação de terras e de nunciação de obra nova, tem-se que a regra nessas demandas é a competência territorial absoluta ser do foro de situação da coisa[3].

 

A ação possessória imobiliária deve ser proposta no foro de situação da coisa, cujo juízo tem competência absoluta (art. 47, § 2º, do CPC).

 

A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação, ressalvada a pactuação consumerista, quando favorável ao consumidor (art. 63, § 1º, do CPC, com redação dada pela Lei 14.879/2024).

 

A exigência de que a eleição de foro tenha pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação restringe a autonomia privada, sendo passível de crítica ou questionamento, notadamente em contratos paritários e simétricos (art. 421-A do Código Civil, incluído pela Lei 13.874/2019)[4].

 

Frise-se que o foro contratual obriga os herdeiros e sucessores das partes (art. 63, § 2º, do CPC).

 

Antes da citação, a cláusula de eleição de foro, se abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício pelo juiz, que determinará a remessa dos autos ao juízo do foro de domicílio do réu (art. 63, § 3º, do CPC).

 

Embora o foro de eleição diga respeito à competência territorial, se a cláusula contratual a respeito dessa matéria for abusiva, dificultando de forma indevida ou excessiva o acesso de uma das partes à jurisdição, cabe ao juiz, antes da citação, reconhecer de ofício a sua ineficácia e determinar a remessa dos autos do processo ao juízo do foro de domicílio do réu.

 

Nas relações de consumo, em razão da vulnerabilidade do destinatário final, além de ser imprescindível que eventual cláusula sobre eleição de foro esteja prevista de forma clara, bem legível e compreensível (art. 46 da Lei 8.078/1990), se ela for abusiva, por dificultar o acesso à justiça, será nula, não produzindo efeitos (art. 6º, incisos VII e VIII, e art. 51, inciso XV, da Lei 8.078/1990).

 

Nos contratos de consumo, e mesmo nos contratos de adesão[5], devem ser observados certos limites na eleição de foro, que será considerada ilegítima quando dificultar de forma desproporcional o exercício dos direitos fundamentais de ação ou de defesa.

 

Citado, incumbe ao réu alegar a abusividade da cláusula de eleição de foro na contestação, sob pena de preclusão (art. 63, § 4º, do CPC).

 

Se o juiz não declarar a nulidade do foro de eleição, nem o réu arguir a incompetência territorial do foro de eleição, ela será prorrogada, por se tratar de competência territorial, ou seja, de natureza relativa (art. 65 do CPC).

 

Se o autor ajuizar a ação em foro diverso do eleito, cabe ao réu alegar essa incompetência relativa em preliminar de contestação. Não o fazendo, prorroga-se a competência do foro em que a demanda foi ajuizada (art. 65 do CPC), pois ocorre a renúncia tácita do foro de eleição.

 

O ajuizamento de ação em juízo aleatório, entendido como aquele sem vinculação com o domicílio ou a residência das partes ou com o negócio jurídico discutido na demanda, constitui prática abusiva que justifica a declinação de competência de ofício (art. 63, § 5º, do CPC, incluído pela Lei 14.879/2024).

 

Com base no critério sistemático, entende-se que o referido parágrafo deve ser interpretado de acordo com o caput do art. 63 do CPC. Em outras palavras, o art. 63, § 5º, do CPC incide em caso de eleição de foro, a qual é aplicada quanto à competência relativa. Nesse enfoque, esse parágrafo, incluído pela Lei 14.879/2024, explicita quando a cláusula de eleição de foro é abusiva (art. 63, § 3º, do CPC), podendo ser considerada ineficaz de ofício pelo juiz.

 

Cabe, assim, acompanhar a aplicação das previsões decorrentes da Lei 14.879/2024, publicada no Diário Oficial da União de 05.06.2024, a respeito da eleição de foro e do ajuizamento de ação em juízo aleatório.

 

[1] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Direito civil: parte geral e obrigações. 2. ed. São Paulo: Juspodivm, 2024. p. 228.

[2] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: Juspodivm, 2024. p. 199-200.

[3] “4. O ajuizamento da ação de adjudicação compulsória de imóvel não está condicionado ao registro do respectivo contrato na matrícula do bem. Súmula 239/STJ. 5. Independentemente da existência ou não do registro, a ação e o provimento jurisdicional pretendido permanecem os mesmos, de modo a não justificar tratamento diferenciado quanto à competência. 6. A excepcional competência absoluta do foro de situação da coisa, prevista no art. 47, § 1º, do CPC/2015, decorre do juízo de conveniência e interesse público do legislador de decidir in loco os litígios referentes aos imóveis, com melhor conhecimento das realidades fundiárias locais ou regionais, facilidade para a realização de perícias, maior probabilidade de identificar e localizar testemunhas, bem como diante do fato de que a destinação dada ao imóvel pode ter repercussões na vida econômica ou social de uma localidade ou de uma região. 7. Assim, a competência para processar e julgar a ação de adjudicação compulsória de imóvel, independentemente do registro do contrato na matrícula do bem, é do juízo do foro da situação do imóvel, na forma do art. 47, § 1º, do CPC/2015, que, por ser absoluta, prevalece sobre o foro de eleição. Doutrina e Precedentes do STF e do STJ” (STJ, 3ª T., REsp 2.036.558/DF, 2022/0160722-1, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 23.03.2023).

[4] “1. Consoante orientação firmada pela Colenda Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, a cláusula do foro de eleição é válida e somente pode ser afastada quando, segundo entendimento pretoriano, seja reconhecida a sua abusividade, a inviabilidade ou especial dificuldade de acesso ao Poder Judiciário. Precedentes” (STJ, 2ª Seção, AgInt no CC 1.964.10/DF, 2023/0120537-3, Rel. Min. Marco Buzzi, DJe 07.05.2024).

[5] “1. A jurisprudência desta Corte Superior possui o entendimento no sentido da possibilidade de declarar a nulidade da cláusula de eleição de foro estipulada em contrato de adesão, desde que configurada a vulnerabilidade ou a hipossuficiência do aderente ou o prejuízo no acesso à justiça. Incidência do óbice da Súmula 83/STJ” (STJ, 3ª T., AgInt no AREsp 2.450.317/PI, 2023/0281181-5, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 17.04.2024).