É futebol ou vale-tudo?

Gisele Leite

Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora – Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE – Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC – Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga.

 

Resumo: Lesão corporal produzida por preposto do empregador em ambiente de trabalho é crime grave e atentatório à dignidade da pessoa humana. Punir a vítima é também errôneo, pois a lesão pode trazer reflexos emocionais e psicológicos no trabalhador e, até impedi-lo de retornar ao trabalho.

Palavras-chave: Direito do Trabalho. CLT. Lesão Corporal. Direito Penal. Flagrante delito.

 

O jogador do renomado time carioca foi agredido com soco no rosto, depois da vitória do time sobre o time local, em Belo Horizonte. A agressão partiu do preparador físico que fora demitido por justa causa. A agressão ocorreu no vestiário em Belo Horizonte. Aliás, o referido preparador físico não é novato em envolvimento em episódios violentos.

Em agosto de 2023 no jogo entre Nice e Olympique de Marselha, no campeonato de futebol francês, também proferiu soco em um torcedor que havia invadido o gramado e participado da confusão entre jogadores e as comissões técnicas dos dois times.

A vítima do preparador técnico prestou a queixa-crime na delegacia da Polícia Civil de Minas Gerais e relatou ainda que estava no vestiário conversando pelo celular com familiares, logo depois da partida pelo Brasileirão, quando fora abordado violentamente pelo preparador técnico.

Tudo começara porque o preparador físico perguntou o motivo pelo qual o jogador abandonou o aquecimento na beira do gramado, nos finais minutos do jogo. E, em seguida, proferiu tapas no rosto do jogador. E, quando a vítima afastou a mão do agressor, na sequência, deu-lhe um soco e, outros jogadores do time tiver que conter o exaltado e violento preparador físico. Questiono-me: É futebol ou luta livre?

A explosão agressiva foi justificada pelo preparador foi devido se sentir magoado com a situação e ter reagido da pior forma. A vítima, o jogador passou por exame de corpo de delito que atestou as lesões no rosto e na boca. Foi lavrado Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) em que o envolvido, preparador, assumira o compromisso de comparecer à audiência no Juizado Especial Criminal para as medidas legais cabíveis e, em seguida, fora liberado.

Questiono-me, novamente, houve indubitável flagrante delito, por que o agressor não ficou detido? E, depois levado à audiência de custódia? A propósito, o agressor não é brasileiro e, portanto, há forte indício que não responderá a dita ação penal correspondente.

As infrações de menor potencial ofensivo são todas as contravenções penais[1] (DL 3.688/41) e os crimes cuja pena privativa de liberdade não excede 2 (dois) anos de reclusão.  Assim, por exemplo, não se prende em flagrante nos seguintes casos: lesões corporais leves, dano, constrangimento ilegal, ameaça, crimes contra a honra isoladamente considerados (calúnia, difamação e injúria), desobediência, desacato, exercício arbitrário das próprias razões, perturbação do sossego alheio, jogo de azar, jogo do bicho, entre outros.

O óbice à prisão em flagrante não significa, porém, a impossibilidade de aplicação das penas em lei previstas, em caso de responsabilidade criminal comprovada. Portanto para infração penal leve descabe a prisão em flagrante delito. Cumpre, em tempo, diferenciar vias de fato de lesão corporal leve. Vias de fato, a seu turno, trata-se de infração penal, prevista no artigo 21 do Decreto-Lei 3.688/41, que ameaça à integridade física através da prática de atos de ataque ou violência contra pessoa, desde que não resulte em lesões corporais. São os atos agressivos de provocação praticados contra alguém, mas que não deixam marcas ou sequelas no corpo da vítima.

Como a conduta é menos grave, a pena prevista é de prisão simples de 15 (quinze) dias a 3(três) meses. Pode ser aumentada em até 1/3, caso a vítima seja idosa. Servem como exemplos os atos de: empurrar, sacudir, rasgar ou arrancar roupas, puxar cabelo, dar socos ou pontapés, arremessar objetos e demais atos que não cheguem a causar lesão corporal. Já lesão corporal leve trata-se de crime previsto no artigo 129 do Código Penal, que descreve a conduta criminosa como ofensa à saúde ou lesão ao corpo de alguém. A constatação da lesão corporal, em regra, é realizada através de laudo pericial. Caso o laudo não aponte lesão, o caso pode ser tratado como vias de fato.

O conceito de lesão corporal leve corresponde aos atos agressivos de provocação praticados contra alguém, mas que não deixam marcas ou sequelas no corpo da vítima. Como a conduta é menos grave, a pena prevista é de prisão simples de 15(quinze) dias a 3 (três) meses. Pode ser aumentada em até 1/3, caso a vítima seja idosa. Não há definição de lesão corporal leve, exceto por exclusão. Será lesão leve se não tiver ocorrido qualquer dos resultados que caracterizam a lesão corporal grave (§1º) ou gravíssima (2º).

Deve-se não apenas relacionar lesão corporal somente à integridade física, mas sim com: Integridade física; Saúde fisiológica (funcionamento do organismo); Saúde mental. No crime de lesão corporal, a conduta é mais grave, logo, a pena prevista é mais alta, de detenção de 3 (três) meses 1(um) ano. Também são previstas hipótese de aumento, diminuição e substituição da pena, bem como pena mais grave para os casos nos quais o crime ocorra no âmbito de violência doméstica. Trata-se de Crime de ação penal pública condicionada à representação da vítima vide o art.88, Lei 9099/95.

Segundo o artigo 483, alínea f da CLT depois da agressão a vítima poderá pedir a rescisão contratual com o clube devido à quebra contratual unilateral, pois a agressão partiu de preposto do empregador, que é o status do preparador físico. De fato, a vítima poderá entrar com ação trabalhista solicitando a rescisão indireta do contrato, com base no já citado artigo da CLT, frisando-se ainda que o empregador é plenamente responsável pelos atos praticados por seus prepostos no exercício da função.

O que dá azo a possível indenização por danos materiais e morais causados pelo preposto em face da agressão física já comprovada. E, poderá ainda a vítima pleitear a indenização perante a Justiça do Trabalho. Sendo procedente o pedido de rescisão indireta, poderá a vítima ficar livre para contratar com qualquer outro clube que o queira. Apesar que da decisão ainda caberia recurso, o que poderia formar um imbróglio jurídico, como aconteceu com Gustavo Scarpa e o Fluminense em 2018.

O que poderia afastar por algum tempo o jogador de efetiva atuação em campo. Em caso de procedência do pedido, haveria comunicação direta e imediata a CBF e que publicaria no BID sobre a rescisão, liberando-o para o mercado. Além da covardia física adiciona-se a psicológica pois a agressão fora perante outros jogadores em pleno vestiário. O que também caracterizaria assédio moral.

Cumpre elucidar que o jogador vitimado não saiu do banco de reservas na vitória por dois a um diante do time mineiro, e ao se recusar a continuar no aquecimento depois de outros jogadores terem sido escolhidos para entrar em campo, traduziu-se em insubordinação, mas mesmo assim, nada justifica a agressão física do preparador físico contra o jogador.

A vítima não revidou a agressão sofrida e, a diretoria depois de muitas reuniões tentou contornou a situação e, decidiu pelo imediato desligamento do preparador físico. Realmente, o referido incidência traz à baila questões controvertidas e sérias sobre o comportamento dentro do ambiente esportivo e a relevância de se manter um ambiente seguro e respeitoso para o time. O time passa doravante pela necessidade de reorganizar a equipe de preparação física e ainda resolver a situação do auxiliar Técnico. Enfim, a dita agressão reverberou pelo mundo afora, e um jornal francês ressaltou que a comissão técnica corre sério risco de demissão.

Ainda repercutiu em Portugal, e os principais jornais esportivos fizeram ampla cobertura do fato. Alegam que os jogadores do time se recusam doravante voltar aos treinos enquanto o referido corpo técnico não for despedido. A agressividade humana no desporto não é novidade e a controvérsia esbarra com várias teorias que analisam e ponderam o melhor método de combate. Analisar a agressão no esporte passa pelo enquadramento sociocultural e, principalmente, pela própria modalidade esportiva em questão.

Em particular no futebol, a agressão está associada a muitos fatores, em face da tarefa tática do jogador, do comportamento de treinadores, preparadores e dirigentes e, a ansiedade que tem peso significativo sobre o comportamento dos mesmos dentro e fora do esporte. O episódio não é nada agradável mas, deixaram dúvidas ainda não sanadas. Poder-se-á punir a vítima que não voltou a comparecer aos treinos? Deve o jogador vitimado ainda pagar multa por indisciplina? Afinal, há o impacto moral e emocional da vítima a ser relevado.

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[1]Crime e contravenção são infrações penais de espécies diferentes. Crime (mais grave) – reclusão e detenção até 30 (trinta) anos; ação penal pública e privada; tentativa é punível. Contravenção (mais leve) – prisão simples até 5 (cinco) anos; apenas ação penal incondicionada; tentativa não é punível. Para os crimes, a lei prevê prisão de reclusão ou detenção, que pode chegar a até 30 anos. Eles podem ter natureza dolosa (com intenção) ou culposa (sem intenção). Para este tipo de infração penal são previstos três tipos de pena:  privativa de liberdade, restritiva de direitos e multa.