Conversão de Tempo Especial em Tempo Comum Após a EC 103/2019: Impactos na Prática Previdenciária

RAFAEL GABARRA

Advogado especialista em Direito Processual Civil e Previdência Social

 

Resumo A Emenda Constitucional nº 103/2019 trouxe profundas alterações no sistema previdenciário brasileiro, especialmente em relação à conversão de tempo especial em tempo comum. A possibilidade de conversão, anteriormente assegurada pela Lei nº 8.213/91 e pelo Decreto nº 3.048/99, sofreu impactos diretos, gerando incertezas jurídicas e dificuldades práticas na concessão e revisão de benefícios. Este artigo analisa, à luz da legislação, doutrina e jurisprudência atual, os reflexos da EC 103/2019 na conversão de tempo especial em comum, destacando as dificuldades enfrentadas na prática administrativa e judicial e propondo alternativas para a defesa dos interesses dos segurados.

 

Palavras-chave: Aposentadoria especial; Conversão de tempo; EC 103/2019; INSS; Direito Previdenciário.

 

  1. Introdução

A aposentadoria especial sempre foi um benefício de grande importância para segurados expostos a agentes nocivos à saúde, como ruído, calor, agentes químicos e biológicos. Até a promulgação da Emenda Constitucional nº 103/2019, o tempo de atividade especial poderia ser convertido em tempo comum, permitindo ao segurado antecipar sua aposentadoria ou aposentar-se de forma especial, independentemente de idade.

Contudo, a EC 103/2019 vedou expressamente essa possibilidade para períodos laborados após a entrada em vigor da emenda. A vedação gerou impactos diretos nos processos administrativos e judiciais, levantando questionamentos sobre a aplicação da nova regra a períodos de atividade especial prestados antes da reforma.

 

  1. Base Legal e Doutrinária

A aposentadoria especial sempre foi regulamentada pela Lei nº 8.213/91, que estabelecia a possibilidade de conversão do tempo especial em tempo comum, aplicando fatores de conversão para diferentes períodos de exposição a agentes nocivos. O Decreto nº 3.048/99 detalhava os critérios para caracterização da atividade especial e os fatores de conversão:

  • Homem: 1,4 (para atividade especial de 25 anos)
  • Mulher: 1,2 (para atividade especial de 25 anos)

Com a EC 103/2019, essa possibilidade foi extinta para períodos laborados após sua entrada em vigor. No entanto, o direito adquirido foi expressamente assegurado, permitindo a conversão para períodos especiais exercidos antes da reforma.

Conforme destaca Daniel Machado da Rocha:

“A aposentadoria especial constitui uma modalidade de aposentadoria por tempo de serviço, com redução deste, em função das peculiares condições sob as quais o trabalho é prestado.” (Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social, 20ª ed., Atlas, 2019)

De maneira similar, Fábio Zambitte Ibrahim ressalta a complexidade envolvida nesse tipo de benefício:

“A aposentadoria especial, ao contrário do que possa parecer, é um dos mais complexos benefícios previdenciários, não sendo exagero considerá-lo o que mais produz dificuldade de compreensão e aplicação de seus preceitos.” (Curso de Direito Previdenciário, 15ª ed., Impetus, 2010)

Regras Anteriores à Reforma

Antes da promulgação da EC 103/2019, a aposentadoria especial era concedida aos segurados que comprovassem 15, 20 ou 25 anos de trabalho em condições prejudiciais à saúde ou à integridade física, dependendo do agente nocivo e da atividade exercida. Não havia exigência de idade mínima para a concessão desse benefício. Além disso, era permitida a conversão do tempo especial em tempo comum, utilizando fatores de conversão específicos:​

  • Homens: 1,4 (para atividade especial de 25 anos)​
  • Mulheres: 1,2 (para atividade especial de 25 anos)​

Essa conversão possibilitava que o tempo trabalhado em condições especiais fosse transformado em tempo comum com acréscimo, facilitando a obtenção da aposentadoria por tempo de contribuição.​

Regras de Transição

Com a EC 103/2019, foram estabelecidas regras de transição para os segurados que já estavam no mercado de trabalho antes da reforma. Para a aposentadoria especial, a principal mudança foi a introdução de uma pontuação mínima, resultante da soma da idade do segurado com o tempo de contribuição, além do tempo mínimo de atividade especial:​

  • 15 anos de atividade especial: 66 pontos​
  • 20 anos de atividade especial: 76 pontos​
  • 25 anos de atividade especial: 86 pontos​

Essas pontuações aumentam progressivamente ao longo dos anos, conforme previsto na legislação. É importante destacar que, para períodos trabalhados até a data da reforma (13/11/2019), mantém-se o direito à conversão do tempo especial em comum, respeitando o direito adquirido.​

Regras Atuais

Após a reforma, para os períodos laborados a partir de 13/11/2019, não é mais permitida a conversão de tempo especial em tempo comum. Além disso, a aposentadoria especial passou a exigir uma idade mínima, além do tempo de contribuição em atividade especial:​

  • 15 anos de atividade especial: 55 anos de idade​
  • 20 anos de atividade especial: 58 anos de idade
  • 25 anos de atividade especial: 60 anos de idade​

Essas alterações visam adequar o sistema previdenciário à nova realidade demográfica e econômica do país, buscando sua sustentabilidade.

 

  1. Jurisprudência e Análise Crítica

3.1. Direito Adquirido e Retroatividade da Norma

O Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou o entendimento de que a vedação trazida pela EC 103/2019 não possui efeito retroativo, respeitando o direito adquirido dos segurados que preencheram os requisitos para conversão de tempo especial antes da promulgação da emenda.

O entendimento majoritário nos tribunais superiores é de que os segurados que já tinham tempo de serviço especial até a reforma, mantêm o direito à conversão, mesmo que o requerimento administrativo ou judicial tenha sido feito após a entrada em vigor da emenda.

3.2. Divergência nos Tribunais Regionais Federais

Os Tribunais Regionais Federais (TRFs) têm seguido esse entendimento, embora haja divergência quanto à extensão do direito adquirido. Alguns TRFs têm restringido a conversão apenas para o período anterior à reforma, enquanto outros admitem a continuidade da conversão até o requerimento da aposentadoria.

Essa divergência reflete a ausência de uniformidade na interpretação da legislação previdenciária após a reforma, gerando instabilidade jurídica para segurados e advogados.

3.3. Problemas na Instrução Administrativa

A instrução administrativa do INSS após a EC 103/2019 tem gerado problemas práticos, incluindo:

  • Indeferimento automático de pedidos de conversão de tempo especial em comum, mesmo quando o tempo especial foi trabalhado antes da reforma.
  • Exigência de comprovação adicional, como LTCAT e PPP, mesmo em casos já reconhecidos judicialmente.
  • Falta de clareza na análise do direito adquirido pelos servidores.

Outro ponto relevante é a mudança na análise dos pedidos de aposentadoria especial pelo INSS. De acordo com normas internas recentes, se houver pendência na documentação, os peritos devem finalizar o processo sem solicitar documentos adicionais, o que pode aumentar o número de negativas por falta de provas e, consequentemente, o aumento dos litígios previdenciários.

 

  1. Desafios e Encaminhamentos Práticos

Para contornar essas dificuldades, recomenda-se:

  • Reforçar o direito adquirido: Apontar de forma clara e fundamentada o exercício de atividade especial antes da EC 103/2019, inclusive com apresentação de laudos técnicos e históricos trabalhistas completos.
  • Provas documentais robustas: Apresentar o LTCAT, PPP, SB-40 e outros documentos técnicos que comprovem a natureza da atividade especial, contemporâneos aos períodos de prática laboral.
  • Orientação na fase administrativa: Recomenda-se orientar o cliente a reunir toda a documentação antes de ingressar com o pedido para evitar indeferimento por falta de provas.
  • Requerimento de revisão: Em caso de negativa pelo INSS, apresentar pedido de revisão administrativo baseado na jurisprudência consolidada e nas normas internas do próprio INSS.
  • Ação judicial: Em caso de indeferimento administrativo, ajuizar ação perante a Justiça Federal para garantir o reconhecimento do direito adquirido à conversão.

 

  1. Conversão como Estratégia de Planejamento Previdenciário

A possibilidade de conversão de tempo especial em tempo comum, mesmo após a EC 103/2019, representa um importante instrumento de planejamento previdenciário. Para segurados que exerceram atividades especiais, a conversão pode acelerar significativamente o tempo necessário para aposentadoria.

Em um cenário de regras cada vez mais rígidas para concessão de aposentadoria, a conversão permite ao segurado antecipar o benefício, otimizando o tempo de contribuição e evitando a aplicação de regras de transição mais severas. Além disso, estrategicamente, a conversão pode ser usada para atingir o tempo mínimo de contribuição exigido para outras modalidades de aposentadoria.

Advogados previdenciaristas devem analisar cuidadosamente o histórico contributivo de seus clientes, verificando períodos de atividade especial e calculando o impacto da conversão no tempo de contribuição total. Essa análise detalhada permite estruturar um planejamento previdenciário mais eficiente, garantindo que o segurado aproveite ao máximo o tempo especial exercido antes da reforma.

 

  1. Conclusão

A conversão de tempo especial em tempo comum após a EC 103/2019 permanece possível apenas para o tempo exercido antes da promulgação da emenda, com base no direito adquirido. A jurisprudência tem reconhecido a possibilidade de conversão nesses casos, mas a prática administrativa do INSS continua sendo um desafio para os segurados e advogados. Portanto, é essencial que todos estejam atentos à fundamentação legal e jurisprudencial para garantir o reconhecimento desse direito.

A ausência de uniformidade na interpretação da norma, somada às dificuldades na fase administrativa, reforça a necessidade de atuação estratégica por parte dos segurados e seus advogados, para garantir que o direito adquirido seja respeitado.

A EC 103/2019, sob o argumento de equilíbrio fiscal e sustentabilidade do sistema previdenciário, sacrificou desproporcionalmente os segurados que trabalham em condições insalubres e perigosas. A imposição de idade mínima, a vedação à conversão de tempo especial em comum e o aumento das pontuações mínimas são medidas que penalizam justamente o segurado que expôs sua saúde ao risco ao longo de sua vida profissional. É contraditório que, poucos anos após a reforma, os próprios governantes já tenham declarado que novas reformas previdenciárias serão necessárias, o que revela que o problema não foi resolvido, apenas transferiu-se o ônus para o trabalhador, sem atacar os verdadeiros desequilíbrios estruturais do sistema. A raiz do problema previdenciário está na baixa arrecadação, nas renúncias fiscais excessivas, na irresponsável desvinculação de receitas e na má gestão dos recursos, questões que permanecem intocadas.

O que nos resta, é lutar com estratégia e resiliência, o planejamento previdenciário deve ser personalizado, considerando as particularidades de cada segurado, para maximizar os benefícios e assegurar os direitos previstos na legislação vigente e, sobretudo, os direitos adquiridos que repercutirão positivamente na renda mensal do benefício.