Consulta ao Ted: Os Requisitos de Admissibilidade sob uma Perspectiva Prática

Raylson Costa de Sousa

Pós-graduando em Processo Civil na PUC-MG, Membro efetivo da Comissão de Processo Civil da OAB/MG, 1º suplente da OAB junto ao COMAM – Uberaba (MG), Idealizador do projeto JurisTED.

 

 

O crescente número de consultas endereçadas aos Tribunais de Ética e Disciplina da OAB e ao Conselho Federal demonstra o interesse legítimo da advocacia em atuar em conformidade com os preceitos éticos da profissão.

Entretanto, observa-se que grande parte dessas manifestações é sumariamente indeferida, ou seja, não conhecida, por inobservância de requisitos formais ou por versarem sobre casos concretos disfarçados de consultas.

Diante desse cenário, este artigo tem por finalidade apresentar, de forma objetiva e didática, os critérios de admissibilidade das consultas, de modo a colaborar com a classe, e estimulando o correto uso desse importante instrumento institucional.

Além da previsão contida no Regulamento Geral da OAB, o próprio Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei nº 8.906/94) também confere atribuição expressa aos Tribunais de Ética e Disciplina para apreciarem consultas, reforçando essa competência consultiva do TED.

Dispõe o art. 71 do EAOAB:

Art. 71. Compete ao Tribunal de Ética e Disciplina, no âmbito da respectiva Seccional:

(…) II – responder a consultas formuladas, em tese, sobre matéria ético-disciplinar.

A consulta, no entanto, não é um canal para resolução de dúvidas subjetivas ou avaliação de situações concretas vivenciadas pelo consulente, mas sim um procedimento próprio no âmbito do Tribunal de Ética, voltado exclusivamente à discussão de questões de direito de natureza abstrata.

Seu objetivo é oferecer interpretação autorizada e “conforme” sobre normas e condutas que possam orientar a atuação da advocacia como um todo e não resolver impasses pessoais, estratégicos ou pontuais da vida profissional do consulente.

Por esse motivo, a admissibilidade da consulta depende do rigor na formulação da pergunta, que deve estar desvinculada de qualquer narrativa fática particularizada, sob pena de não conhecimento.

Dito isso, surge a pergunta central: afinal, quais são, os requisitos de admissibilidade das consultas aos Tribunais de Ética e Disciplina das Seccionais, e do Conselho Federal da OAB (CFOAB)?

Inicialmente, o Código de Ética e Disciplina da OAB estabelece como primeiros requisitos que as consultas sejam formuladas em tese:

Art. 71. Compete aos Tribunais de Ética e Disciplina:

(…)

II – responder a consultas formuladas, em tese, sobre matéria ético-disciplinar;

Trata-se, portanto, de um modelo de consulta pautado pela abstração normativa e pela impessoalidade, em que se busca a interpretação de normas ético-disciplinares aplicáveis à advocacia, sem vínculo com casos concretos ou interesses subjetivos.

Importa destacar, contudo, que a chamada “consulta em tese” não é uma criação exclusiva do sistema OAB. Na verdade, diversos órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública já adotam esse mesmo critério para apreciação de pedidos interpretativos de conteúdo normativo junto a seus Tribunais.[1]

E para explicar melhor essa expressão nos valemos dos ensinamentos do Ilustre Professor Torquato Jardim:

“consultar em tese” é descrever situação, estado ou circunstância genérica o bastante para (a) tal qual a norma jurídica, admitir-se provável sua repetição sucessiva e despersonalizada, e b) revelar-se a dúvida razoável e genuína, em face de lacuna ou obscuridade legislativa ou jurisprudencial, porém, jamais, antecipação de julgamento judicial ou supressão de instância’. (p. 183). [2]

A lição do Professor Torquato Jardim embora esteja se referindo a consultas em tese a serem realizadas nos Tribunais Eleitorais, também nos revela, com precisão, o verdadeiro alcance da expressão “consulta em tese” no plano jurídico-normativo da OAB.

Para ser considerada admissível, a indagação deve ser realizada de maneira despersonalizada, isto é, sem conexão com situações factuais identificáveis, mesmo que hipotéticas.

Recomenda-se, portanto, que o consulente evite perguntas de caráter insinuante ou “casos hipotéticos individuais”, sob pena de não conhecimento da consulta.

Exemplo de consulta que provavelmente não será conhecida:

“em tese, se um advogado se separar da esposa (também advogada) e ela divulgar nas redes sociais que ele não paga pensão, isso configura infração ética?”

Embora esse tipo de indagação possa vir acompanhada da expressão “em tese”, seu conteúdo revela um caso concreto, ainda que hipotético, envolvendo situação pessoal, com partes determinadas e em litígio, o que afasta o caráter geral e despersonalizado exigido para consultas em tese.

Esse entendimento é reiteradamente adotado pelo próprio Conselho Federal da OAB, como se observa no julgamento da Consulta n. 49.0000.2024.012367-3/OEP:

CONSULTA N. 49.0000.2024.012367-3/OEP. Assunto: Incompatibilidade/ impedimento.  Cargo de Secretário Municipal de Governo do Município de Joanópolis/SP. Relator: Conselheiro Federal Pedro Paulo Guerra de Medeiros (GO). Ementa n. 031/2025/OEP. Consulta ao Órgão Especial do Conselho Pleno. Não conhecimento. Impossibilidade de Consulta. Arquivamento. Embora seja notória a disposição do art. 28, III do EAOAB, que trata desse tipo de incompatibilidade, dada a ausência dos requisitos para o cabimento do procedimento, conforme art. 85, IV do Regulamento Geral da OAB, por não haver formulação em tese. Consulta não conhecida. Acórdão: Vistos, relatados e discutidos os autos do processo em referência, acordam os membros do Órgão Especial do Conselho Pleno do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, observado o quórum exigido no art. 92, do Regulamento Geral, por unanimidade, em não conhecer da Consulta, nos termos do voto do Relator. Brasília, 08 de abril de 2025.

Agora, lhes apresento um exemplo de consulta que foi conhecida:

“Há vedação ética de utilização de serviço denominado “oportunidades” na plataforma jurídica Jusbrasil?”.

Como visto, a pergunta foi formulada de maneira abstrata, evidenciando-se que foi formulada em tese, e, além disso, o tema abordado diz respeito à compatibilidade de conduta profissional com as normas éticas da advocacia, especialmente no tocante à publicidade e captação de clientela em ambiente digital matéria de notório interesse da classe.

No caso citado, a admissibilidade da consulta foi confirmada no julgamento da consulta de n.º 124032021-0, da Seccional do Espírito Santo, com decisão proferida em 20 de agosto de 2021, sendo relatora a então Conselheira Ana Maria Bernardes Rocha de Mendonça Pezente. [3]

Com isso, demonstra-se de forma clara e fundamentada como preencher o primeiro e essencial requisito de admissibilidade das consultas ao TED e ao CFOAB: sua formulação em tese.

Para que a presente análise se desenvolva de forma didática e objetiva, nos valeremos, neste momento, de dois julgados paradigmáticos do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB do Espírito Santo (TED-ES), e de Minas Gerais (TED-MG), que nos apresentam expressamente qual o segundo requisito que precisa ser preenchido:

RELATOR (A): DR(A). GIULIA PIPPI BACHOUR GUISSO. PROCESSO Nº 104882019. EMENTA: CASO CONCRETO – DÚVIDA DE COMO PROCEDER AO COBRAR HONORÁRIOS DE ÊXITO – INTERESSE DE OBTENÇÃO DE PREJULGAMENTO – NÃO CONHECIMENTO – ART. 71, II, DO CED C/C ART. 45 DO RI DO TED-OAB/ES. 1) A admissibilidade da consulta submetida ao Tribunal de Ética e Disciplina está adstrita ao preenchimento de dois requisitos: (i) ser formulada em tese e (ii) mesmo que em tese, não evidenciar “interesse de obtenção de prejulgamento para casos específicos”. 2) Os próprios Consulentes apontam se tratar de caso específico, mencionado o nome do cliente que teria realizado o questionamento, além de transcrever cláusula do contrato de honorários que teria gerado a dúvida. 3) Não compete ao TED examinar consulta a respeito de casos concretos. 4) Não conhecimento, nos termos do Art. 71, II, do CED. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos os autos do processo em referência, acordam os membros julgadores integrantes da 1º Turma do Tribunal de Ética e Disciplina do Conselho Seccional da OAB/ES, por unanimidade de votos, observado o quórum exigido no Art. 18 do RI do TED/OAB/ES, em não conhecer da consulta, nos termos do voto da Relatora. data da disponibilização: 24/05/2019

Relator (a): Dr. (a) Alex Barbosa de Matos Consulta nº. 2455/2021… ACÓRDÃO / O.E. /0032/2022. Ementa: CONSULTA. APRESENTAÇÃO DE SITUAÇÃO CONCRETA. IMPOSSIBILIDADE DE CONHECIMENTO. Não se conhece de consulta, mesmo em tese, que apresente interesse de obter-se prejulgamento de caso concreto, em respeito ao parágrafo único, do art. 7º do Regimento Interno do TED-OAB/MG (Resolução 001/2019, do Conselho Seccional da OAB/MG). Recurso não provido. Vistos, relatados e discutidos os autos, acordam os membros da 2ª Turma do Órgão Especial da OAB/MG, em reunião realizada no dia 31 de maio de 2022, à unanimidade de votos, em negar provimento ao recurso, por entender que a consulta formulada apresenta situação de caso concreto, mantendo-se inalterável a decisão do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/MG, nos termos do voto do Relator, que passa a integrar o presente. Fabrício Souza Cruz Almeida, Presidente. Fabrício Souza Cruz Almeida Presidente do Órgão Especial Belo Horizonte, 30 de junho de 2022.

Como visto, mesmo quando formulada em tese, a consulta não será conhecida se tiver por finalidade encobertar a obtenção de prejulgamento ético-disciplinar para casos específicos, ainda que não sejam nominalmente identificados.

Esse é o segundo requisito de admissibilidade: a consulta não pode ser utilizada como mecanismo estratégico para validar previamente uma conduta ou antecipar o desfecho de processo ético-disciplinar em curso ou iminente, ou seja, não pode ficar evidenciado o interesse de obter-se prejulgamento para casos concretos individuais ou coletivos.

O objetivo da consulta deve ser a orientação normativa e institucional da advocacia como um todo, e não a resolução velada de dúvidas com potencial impacto em casos subjetivos, litígios internos ou interesses particulares do consulente.

Importante mencionar, ainda, que no âmbito do Conselho Federal da OAB, tem-se exigido o cumprimento de um requisito adicional para que a consulta seja conhecida.

Segundo reiteradas decisões, será negado o conhecimento de consulta que não veicule matéria em tese relacionada à competência das Câmaras ou do Órgão Especial, ou que não diga respeito à interpretação do Estatuto da Advocacia, do Regulamento Geral, do Código de Ética e Disciplina ou dos Provimentos da OAB.

Essa exigência está expressamente prevista no art. 85, inciso IV, do Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB, e tem sido invocada pelo Conselho Federal ao indeferir (negar conhecimento) a consultas que fogem do escopo da normatividade institucional.

Esse entendimento foi reafirmado na Consulta n.º 49.0000.2023.004597-8/OEP, em que o consulente perguntava sobre o direito ao silêncio do acusado em interrogatórios presenciais ou virtuais.

Vejamos a ementa:

CONSULTA N. 49.0000.2023.004597-8/OEP. Assunto: Consulta. Direito ao silêncio por ocasião do ato de inquirição/interrogatório presencial ou virtual do investigado/acusado. Relator(a): Conselheiro Federal Fabrício de Castro Oliveira (BA). Ementa n. 011/2025/OEP. Consulta ao Órgão Especial. Direito ao silêncio por ocasião do ato de inquirição/interrogatório presencial ou virtual do investigado/acusado. Questionamento que não veicula matéria em tese relativa à competência das Câmaras e Órgão Especial deste Conselho Federal da OAB ou à interpretação do Estatuto da Advocacia, Regulamento Geral, Código de Ética e Disciplina ou dos Provimentos da OAB. Ausência do requisito do art. 85, inciso IV, do Regulamento Geral do EAOAB. Precedentes. Impossibilidade. Arquivamento. Consulta não conhecida. Acórdão: Vistos, relatados e discutidos os autos do processo em referência, acordam os membros do Órgão Especial do Conselho Pleno do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, observado o quórum exigido no art. 92, do Regulamento Geral, por unanimidade, em não conhecer da Consulta, nos termos do voto do Relator. Brasília, 18 de março de 2025. Felipe Sarmento Cordeiro, Presidente. Fabrício de Castro Oliveira, Relator. (DEOAB, a. 7, n. 1576, 01.04.2025, p. 1)

Assim, consultas que abordem temas que não atendam ao requisito do art. 85, IV, do Regulamento Geral, certamente serão sumariamente não conhecidas, conforme reafirmado no julgado citado.

Concluindo, esses requisitos não decorrem apenas de uma exigência formalista, mas de uma lógica institucional, isso porque o parecer oriundo de uma consulta não é uma mera resposta pessoal, mas um enunciado de caráter normativo e orientador, dotado de valor interpretativo e com aplicabilidade geral.

Assim, consultas que envolvam interesse direto do consulente, descrição detalhada de casos concretos, dúvida sobre estratégia de atuação em processos específicos ou pedidos de “prejulgamento” de condutas estão, por natureza, fora do escopo de admissibilidade e, portanto, não devem ser conhecidas pelos julgadores.

No entanto, é importante destacar que a jurisprudência dos Tribunais de Ética e Disciplina tem evoluído no sentido de admitir a possibilidade de prestação de “esclarecimentos gerais sem vinculação à consulta, no interesse geral da classe”.

Essa flexibilização interpretativa permite que, mesmo nos casos em que a consulta não preencha todos os requisitos formais para ser conhecida, notadamente por tratar de situações concretas, sejam prestados esclarecimentos de caráter orientativo, desde que haja relevância coletiva para a advocacia. Esse entendimento restou consagrado, por exemplo, no Acórdão nº 1046/2024 da Câmara Especial do TED da OAB/PR, com a seguinte ementa:

RELATOR DE JULGAMENTO: LUCIO BAGIO ZANUTO JUNIOR NÚMERO ACÓRDÃO: 1046/2024. EMENTA: CONSULTA. CASO CONCRETO. IMPOSSIBILIDADE. Somente é conhecida consulta “em tese”, em face do seu caráter normativo, vinculativo e de interesse geral para a classe. Para caso concreto, de interesse pessoal da parte consulente, ainda que omitidos os nomes dos envolvidos e demais fatos, não há conhecimento de consulta por esta Câmara Especial (art. 5º, II do Reg. Interno do TED/OAB-PR e art. 71, II do CED/OAB). Consulta não conhecida. Precedentes. PARCERIA E ASSOCIAÇÃO ENTRE ADVOGADOS OU SOCIEDADE DE ADVOGADOS COM PARTICIPAÇÃO E DIVISÃO DE HONORÁRIOS. A parceria e associação entre advogados ou sociedade de advogados não é vedada, desde que respeitados os preceitos éticos e que não constitua sociedade irregular de advocacia que viole as normas e preceitos da OAB e muito menos usar o advogado parceiro como um verdadeiro “agenciador de causas”, utilizando deste colega para angariar ou captar ações e clientes, pois essas condutas constituem infrações disciplinares previstas no art. 34, incisos II, III e IV da Lei 8.906/94. Esclarecimentos gerais prestados sem vinculação à consulta, mas no interesse geral da classe. Precedentes. Acórdão: Vistos, examinados, relatados e discutidos estes autos de Consulta, ACORDAM os membros integrantes da Câmara Especial do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em NÃO CONHECER a Consulta nos termos do voto do Relator, seguido pelos demais componentes desta Câmara Especial. Relator de Julgamento: Lucio Bagio Zanuto Junior. Revisora: Viviane Hadas Ascêncio. Presidente: Adriana D’Avila Oliveira. Data de Julgamento: 02/12/2024. Disponibilização: 24/02/2025

Diante disso, recomenda-se que, ao formular a consulta, o consulente inclua expressamente um pedido subsidiário, solicitando esclarecimentos gerais sobre a temática, ressaltando o interesse público e institucional do questionamento para o exercício ético da advocacia.

 

[1] https://www.tre-df.jus.br/jurisprudencia/solicitacao-de-pesquisa-de-jurisprudencia-e-legislacao/requisitos-para-formulacao-de-consultas-perante-o-tre-df

[2] JARDIM, Torquato. Processo e Justiça Eleitoral: introdução ao sistema eleitoral brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 30, n. 119, p.30-37, jul./set. 1993, p.34.

[3] https://www.oabes.org.br/arquivos/2018/CONSULTA_FORMULADA_EM_TESE_-_3124032021-0_2.pdf