Basta a Omissão do Segurado de que a Doença Grave é Motivo para Recusa de Indenização de Seguro de Vida?

Voltaire Marensi

Advogado e Professor

Em Informativo datado de 09/09/2024,[1] se encontra noticiado que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento de uma apelação,[2] teria aceitado a tese adotada por uma seguradora que recusou a cobertura de um seguro de vida em decorrência de omissão de doença grave.

Lastreado neste entendimento aquele Tribunal negou recurso dos beneficiários de seguro de vida que não receberam a cobertura em razão da omissão sobre o real estado de saúde por parte da segurada falecida.

Tal decisão foi exarada pela 35ª Câmara de Direito Privado, ao considerar que houve má-fé no preenchimento da proposta de adesão efetivada pela segurada que acabou falecendo no decurso do tempo.

Na íntegra, o teor do mencionado escrito do Informativo, nominado em nota de rodapé:

“Na inicial, os autores defenderam que tão somente o atestado de óbito seria prova suficiente para comprovar o fato gerador da obrigação de pagar. Mas, em 1º grau, a sentença negou a cobertura ao considerar que houve omissão de doença grave no ato da contratação.

Os autores interpuseram recurso alegando, em síntese, que, para que houvesse a exclusão de cobertura, seria necessário que a seguradora provasse que, na data da celebração do contrato, a segurada tinha conhecimento da doença que contribuiu para seu óbito, ou que tivesse realizado exames e constatado a doença. Grifo meu.

Alegaram, ainda, que o fato de a mulher ter falecido menos de um ano depois da contratação do seguro não é prova de que sabia ser portadora de doença que contribuiu para sua morte.

Ao julgar o recurso de apelação, o Tribunal daquele Estado da Federação, observou o que diz a súmula 609 do STJ – de que a recusa sob alegação de doença preexistente é ilícita se não houve a exigência de exames médicos. No entanto, para o colegiado, a existência de exame prévio não é o único elemento a ser aferido nesses casos, sendo considerada lícita a recusa se comprovada a má-fé. Grifo meu.

O relator, desembargador Gilson Miranda, reconheceu que, desde a proposta, ou mesmo independentemente dela, incumbe ao segurado, como imperativo de boa-fé, informar ao segurador tudo quanto possa influir na verificação da probabilidade do sinistro, inclusive de forma a permitir a justa fixação do prêmio devido pela garantia contratada. Grifo meu.

Ponderou, por fim, que a segurada, realmente, tinha conhecimento de seu gravíssimo estado de saúde e sonegou essa informação por ocasião da contratação do seguro de vida, já que uma cirurgia (eletiva), relacionada ao tumor, ocorreu poucos dias após a contratação.

Em sintonia com esse entendimento o mencionado órgão de segundo grau, após analisar detidamente o extenso prontuário médico da segurada, contendo o longo e doloroso calvário que ela percorreu em razão do câncer de pâncreas que lhe vitimou, pode-se afirmar que ela realmente tinha conhecimento de seu gravíssimo estado de saúde e sonegou essa informação por ocasião da contratação do seguro de vida”.[3] Grifo meu.

Data vênia, amparado no que escrevi algures, inclusive com esteio em manifestações do teor do tema pautado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, afirmei:

“Nenhuma outra excepcionalidade, que não esbarre no princípio da boa-fé foi prevista e tipificada em nossa legislação material, nem mesmo quando se trata de aceitar, ou não, riscos oriundos de eventuais doenças preexistentes que acometem o segurado. Não se prevê também qualquer limite de idade que restrinja, em tese, a contratação do seguro”.

À época destes comentários também aludi o que constou no Portal da Corte infraconstitucional, estampado em 10/05/23, onde me deparei com a seguinte notícia: “Seguradora deverá pagar indenização a segurado que não tinha diagnóstico médico confirmado”.

Essa matéria também já foi objeto de decisão pioneira no STJ, da lavra do douto  ex-ministro relator Eduardo Ribeiro, em julgamento realizado em 23 de março de 1999 pela Egrégia Terceira Turma daquele Colegiado.

Ficou assentado naquele julgamento que “se a seguradora aceita a proposta de adesão, mesmo quando o segurado não fornece informações sobre o seu estado de saúde, assume os riscos do negócio. Não pode, por essa razão, ocorrendo o sinistro, recusar-se a indenizar”.[4]

Pois bem. Mesmo com o advento da súmula 609, a Segunda Seção daquele Tribunal, em 11/04/2018, ficou assentado:

“A recusa de cobertura securitária, sob a alegação de doença preexistente, é ilícita se não houve a exigência de exames médicos prévios à contratação ou a demonstração de má-fé do segurado”. Grifei.

Em verdade o enunciado é, de fato, mais abrangente daquele processo que foi leading case na Corte o qual declinei linhas acima.

O histórico no qual se julgou também um outro recurso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, da relatoria  do eminente ministro Marco Buzzi, dizia respeito a uma ação de cobrança de seguro de vida pelas herdeiras do de cujus, vale dizer, do segurado, que após darem entrada no pedido para recebimento da indenização, a seguradora teria negado o pagamento sob justificativa de que o falecido sabia ser portador de doença e teria omitido tal informação no momento da contratação securitária.[5]

Neste processo a seguradora foi condenada a pagar o valor da indenização securitária. O Tribunal Estadual manteve a decisão, sob o prisma de que, por não haver diagnóstico conclusivo, mas apenas alterações com suspeita de células neoplásicas, o segurado não tinha obrigação de se autodeclarar portador de alguma doença quando contratou o seguro. Grifo meu.

A Companhia de Seguros recorreu ao STJ sustentando que, como o contratante investigava a possibilidade de estar com uma doença grave, ele teria violado o dever de boa-fé ao se declarar em plenas condições de saúde. (Sic daqueles autos). Todavia, o recurso da seguradora foi improvido pelo Tribunal da Cidadania.

Nesta mesma direção dos processos acima relatados e nos mesmos moldes se colhe mais um outro julgamento, desta vez em “sede de agravo interno”, em que a Quarta Turma do STJ confirmou decisão monocrática do relator, ministro Marco Buzzi, em que se negou provimento ao recurso da seguradora.

Além de invocar a referenciada Súmula 609, o ministro acima nominado ressaltou a vigente Súmula 7 do Tribunal, que impediria o reexame de provas em recurso especial.

Segundo excerto do voto do ministro relator, “o tribunal de origem, soberano na análise das circunstâncias fáticas da causa, asseverou que a seguradora, ora recorrente, não solicitou a realização de exames ou perícia prévios para apuração de doenças preexistentes, e tampouco comprovou a má-fé do segurado, o que tornaria ilícita a recusa da cobertura securitária.”

Ademais, o entendimento da Corte de origem estaria em consonância com a jurisprudência do STJ e que, para afastar suas conclusões a partir dos argumentos apresentados pela seguradora, seria inevitável reavaliar as provas do processo.

Ainda o relator, ministro Marco Buzzi, aditou também em seu voto que, como destacado pelo acórdão guerreado, a proposta que foi preenchida pelo segurado e juntada aos autos estaria ilegível, não sendo possível entender o que foi perguntado, nem tampouco se as respostas apresentadas seriam realmente falsas.

Nesse sentido, ressaltou o julgador, os seguintes precedentes:

AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL – AÇÃO CONDENATÓRIA. DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA DA PARTE DEMANDADA.

  1. Nos termos da Súmula 609/STJ, “a recusa de cobertura securitária, sob a alegação de doença preexistente, é ilícita se não houve a exigência de exames médicos prévios à contratação ou a demonstração de má-fé do segurado“.
  2. A revisão do aresto impugnado exigiria derruir a convicção formada nas instâncias ordinárias acerca da inexistência de má-fé por parte do segurado e do cabimento da condenação ao pagamento de danos morais no caso dos autos. Incidência das Súmulas 5 e 7/STJ. 3. Agravo interno desprovido. (AgInt nos EDcl no AREsp n. 2.022.106/SC, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 27/6/2022, DJe de 30/6/2022.

Outro julgado também acostado naquele processo suso referenciado:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.

SEGUROS DE VIDA E SEGUROS PRESTAMISTAS. INDENIZAÇÕES NEGADAS SOB O FUNDAMENTO DE DOENÇA PREEXISTENTE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 609 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. NÃO EXIGÊNCIA DE EXAMES MÉDICOS À ÉPOCA DA CONTRATAÇÃO DOS SEGUROS. RISCO ASSUMIDO PELA SEGURADORA, QUE NÃO SE DESINCUMBIU DO ÔNUS DE COMPROVAR A ALEGADA MÁ-FÉ DO SEGURADO. SÚMULA 7 DO STJ. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO. (AgInt no AREsp n. 2.003.688/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 9/5/2022, DJe de 11/5/2022).

Outro na mesma direção:

“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.

SEGURO HABITACIONAL. NÃO CABIMENTO DA RECUSA DE COBERTURA. DOENÇA PREEXISTENTE. MÁ-FÉ DO SEGURADO QUE NÃO DECORRE DA SIMPLES OMISSÃO. INTENÇÃO MALICIOSA NÃO DEMONSTRADA. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO DESPROVIDO.

  1. Segundo orientação jurisprudencial desta Corte, a recusa da seguradora ao pagamento da indenização contratada, sob a alegação de doença preexistente, pressupõe a realização de exame médico antes da contratação ou a comprovação de que o contrato de seguro foi celebrado pelo segurado com má-fé.
  2. [… . …]
  3. Para concluir que o segurado teria agido de má-fé, seria indispensável o reexame fático-probatório, providência vedada na via eleita, ante a incidência do enunciado n. 7 da Súmula do STJ. 4. Agravo interno desprovido. (AgInt no AREsp 1788274/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/05/2021, DJe 13/05/2021).

No mesmo sentido, ainda, confiram-se os seguintes julgados: AgInt no AREsp n. 1.988.273/DF, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 14/3/2022, DJe de 21/3/2022; AgInt no AREsp 1622988/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 23/02/2021, DJe 03/03/2021; AgInt no AREsp 1355356/PR, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 19/08/2019, DJe 27/08/2019.

A presunção de boa-fé é princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar a parêmia: a boa-fé se presume; a má-fé se prova. (REsp 956.943/PR – Repetitivo, Rel. p/ acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Corte Especial, DJe de 1º/12/2014).” (AgInt nos EDcl no REsp n.1.745.782/PR, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, DJe de 29/11/2018).

Portanto, caros leitores e dignas leitoras, o Superior Tribunal de Justiça consolida seu entendimento de que no caso de seguro de vida se o segurado realmente agir com má-fé, o princípio anverso, vale dizer, a boa-fé, deve prevalecer porque a regra geral determina que aquela deve ser devidamente comprovada – preferencialmente pela exigência de exames e perícias médicas – e não só presumida a fim de que o segurado perca seu direito ao pagamento da indenização securitária.

Se vislumbra pelo que se acaba de expor nas decisões acima anotadas que precisamos, urgentemente, confeccionar uma legislação mais moderna, ágil, competitiva e transparente para que o mercado de seguro cresça com plena credibilidade, mas, sempre pautado por normas austeras e explícitas que consolidem em grau hierárquico ordinário a valorização do contrato de seguro, deixando normas inferiores previstas em nível constitucional para que regulamentem ordenamentos substanciais pautados no verdadeiro espírito da Teoria da Norma Jurídica escrita por Norberto Bobbio, aonde Romano escreveu que “antes de ser norma” o direito é organização.[6]

Organização é nada mais do que o respeito ao princípio da elaboração das leis, onde estão plasmadas as bases da construção do arcabouço jurídico previsto em todas as nossas Constituições.

Dentro desta sistemática pretendo gizar que a alegada má fé deve ser devidamente comprovada nas instâncias ordinárias, notadamente acostadas por laudos médicos que comprovem, de modo afirmativo, de que a pessoa segurada era portadora de doença grave e que faltou com o seu dever de informação à seguradora.

Acredito que somente com esses princípios devidamente clausulados nas apólices de seguro, de modo claro e transparente, as partes contratantes, quer segurados, quer seguradoras poderão colocar uma pá de cal em qualquer modalidade contratual, mormente no seguro de pessoa.

A vida, como um bem jurídico fundamental, possui um valor inestimável e, por isso, sua valoração não pode ser meramente econômica. O Direito busca, através de diversas normas e princípios, proteger e garantir a dignidade da pessoa humana, sendo a vida o núcleo essencial dessa proteção, quer para a coletividade, quer para empresas que resguardam este bem maior.

É o que penso.

Porto Alegre, 10 de setembro de 2024.

 

[1] https://www.migalhas.com.br/quentes/414616/tj-sp-valida-recusa-de-cobertura-de-seguro-por-omissao-de-doenca-grave.

[2] Processo: 1027261-45.2022.8.26.0100. Tribunal de Justiça de São Paulo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[3] Informativo supra mencionado.

[4] Recurso Especial sob número 198.015/GO.

[5] Aresp número 2.028.338/MG.

[6] Teoria na Norma Jurídica. Norberto Bobbio, Editora Edipro, 2019, página 35.