O Interesse de Bem Segurado e sua Venda sem Ciência da Companhia Seguradora
Voltaire Marenzi
Advogado e Professor
Tomei ciência de um julgamento em relação a uma demanda disponibilizada pelo Diário da Justiça Eletrônico do Superior Tribunal de Justiça, datado de 05/09/2024, publicado em dia subsequente, referentemente a um Recurso Especial sob número 1.974.633/RS, decidido pela Terceira Turma, tendo como relator o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que guardou a seguinte ementa:
“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. CONTRATO DE SEGURO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. APLICAÇÃO. INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA NEGADA. INTERESSE SEGURADO. ALIENAÇÃO A TERCEIRO. ART. 785, §1º, DO CÓDIGO CIVIL. COMUNICAÇÃO. NECESSIDADE. CLÁUSULA EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE. VALIDADE. DEVER DE INFORMAÇÃO. OBSERVÂNCIA. SÚMULA Nº 465/STJ. INAPLICABILIDADE.
O fato objeto deste julgamento ocorreu diante de uma controvérsia em que se procurou saber, se se teria sido configurada uma hipótese de negativa de prestação jurisdicional com uma definição final validada em um clausulado inserido em um contrato de seguro empresarial.
A matéria era relativa a uma pessoa jurídica que ao firmar à proteção do seu patrimônio – contrato de seguro de um bem móvel, – uma escavadeira hidráulica -, que segundo o teor do postulado, já em sede de recurso especial, manejado pelo segurado que entendia que a seguradora não poderia se eximir da obrigação de indenizar em razão da transferência do dito bem, independente da prévia comunicação daquele.
O fato e o direito apresentados no caso sub judice, e suas peculiaridades se diferenciavam dos precedentes que deram origem à Súmula nº 465/STJ, tendo em vista que o bem segurado – escavadeira hidráulica –, além de ser concebido para o desempenho de tarefas que, por sua própria natureza, apresentavam elevado grau de risco, era efetivamente utilizada no desenvolvimento da atividade empresarial havendo no contrato, cláusula expressa prevendo não apenas o dever de comunicar eventual alienação do bem, mas também sua exclusão de cobertura na hipótese de “transferência do interesse segurado nos bens cobertos, ainda que temporariamente, através de arrendamento, cessão ou locação destes bens a terceiros”.
Haveria, portanto, a necessidade de revisitação da orientação compendiada na Súmula nº 465/STJ à luz do § 1º do art. 785 do atual Código Civil, que admite a transferência do contrato nominativo de seguro de coisa a terceiro, com a alienação ou cessão do interesse segurado, condicionando seus efeitos, contudo, à comunicação do fato à seguradora.
Em verdade, segundo o próprio ministro relator, a cláusula contratual era suficientemente clara quanto à isenção de responsabilidade da seguradora na hipótese de alienação do interesse segurado, com pleno atendimento ao dever de informação, ex vi, do que consta expressamente no artigo 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor.
Em síntese, o recurso especial aviado pelo segurado foi improvido por unanimidade.
Pois bem. Consoante o voto exarado pelo relator, “o exame quanto à abusividade da referida cláusula contratual deve ser realizado sob a ótica das normas de proteção ao direito do consumidor, visto que há relação de consumo no seguro empresarial se a pessoa jurídica o firmar visando a proteção do próprio patrimônio (destinação pessoal), sem o integrar nos produtos ou serviços que oferecem, mesmo que seja para resguardar insumos utilizados em sua atividade comercial, pois será a destinatária final dos serviços securitários”.[1]
Mais, disse o relator:
“Passando ao cerne da controvérsia, impõe-se, desde logo, ressaltar que, no âmbito desta Corte Superior, foi editada a Súmula nº 465/STJ, com o seguinte teor: ” Ressalvada a hipótese de efetivo agravamento do risco, a seguradora não se exime do dever de indenizar em razão da transferência do veículo sem a sua prévia comunicação”.
A ratio decidendi, vale dizer, em bom português, a razão de decidir, também foi palco de que os precedentes que deram origem à Súmula nº 465/STJ, aprovada em 13/10/2010, seriam anteriores à vigência do atual Código Civil sendo verificada, no julgamento de outros casos análogos, apenas a reprodução de julgados, não tendo havido, desde então, debates aprofundados a respeito dos efeitos da nova codificação civil sobre a orientação compendiada na súmula referenciada.
Para o exame da controvérsia, o ponto fundamental também se estribou na interpretação do artigo 785 do Código Civil, que assim dispõe, verbis:
“Salvo disposição em contrário, admite-se a transferência do contrato a terceiro com a alienação ou cessão do interesse segurado.
- 1º Se o instrumento contratual é nominativo, a transferência só produz efeitos em relação ao segurador mediante aviso escrito assinado pelo cedente e pelo cessionário.
- 2º A apólice ou o bilhete à ordem só se transfere por endosso em preto, datado e assinado pelo endossante e pelo endossatário”.
Ao azo dos comentários a este dispositivo legal, disse um dos ex-ministros do STJ, o seguinte:
“A regra é para impor segurança ao negócio celebrado. A ausência de comunicação ao segurador não invalida a transferência. Esta, contudo, só produz efeitos entre o cedente e o cessionário”.[2]
Vale sublinhar, nesta passagem, o substancioso voto do ministro relator, com amparo no direito comparado, quer em sua doutrina, quer no articulado legal em suas respectivas legislações.
Consta, portanto, inserto no corpo do voto condutor, a seguinte passagem:
“Essa é, aliás, a solução preconizada pelo art. 95, 2, da Lei de Contrato de Seguro Portuguesa, segundo o qual ‘salvo disposição legal ou convenção em contrário, em caso de transmissão do bem seguro, sendo segurado o tomador do seguro, o contrato de seguro transmite-se para o adquirente, mas a transferência só produz efeito depois de notificada ao segurador’, esclarecendo-se, ainda, que ‘verificada a transmissão da posição do tomador do seguro, o adquirente e o segurador podem fazer cessar o contrato nos termos gerais’ (art. 95, 4).
Antes de prosseguir na extensão do voto em relação a outras legislações, acredito que a Lei de Contrato de Seguro Portuguesa seguiu a norma balizada no Código Civil Português, Decreto-Lei nº 47.344, de 25 de novembro de 1966, que aprovou o Código Civil daquele país que faz parte de um decreto-lei.[3]
Colhe-se neste diploma material no Capítulo das Obrigações em Geral, a Transmissão de Créditos e de Dívidas, vasada nos seguintes termos:
- O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.
- A convenção pela qual se proíba ou restrinja a possibilidade da cessão não é oponível ao cessionário, salvo se este a conhecia no momento da cessão.[4]
A Lei Espanhola n. 50/1980, de 8 de outubro, sobre o Contrato de Seguro, em seu artigo 34, destaca o voto do eminente ministro relator, “impõe a cessão automática do seguro de danos com a transmissão do objeto assegurado, deixando claro que o adquirente se sub-roga em deveres e direitos, salvo se pactuado de forma diversa no caso de apólices nominativas para riscos não obrigatórios. De todo o modo, o segurado deverá comunicar ao adquirente e ao segurador.
“O Código Civil Italiano, continua o ministro relator, em seu art. 1.918, estabelece que, nos contratos de seguro de dano, com apólice nominativa, a alienação da coisa não é causa de extinção do contrato, mas o segurado deve comunicar a existência do seguro ao adquirente e a transmissão à seguradora, sob pena de permanecer obrigado a pagar o prêmio remanescente. Caso o adquirente permaneça em silêncio, pressupõe-se que consentiu com a transferência.
Após a comunicação, o segurador pode resolver o contrato”.
Já, digo eu, o Codice Delle Assicurazioni, prevê o trasferimento di proprietà del veicolo o del natante no artt.171 em suas letras “a” “b” e “c”, 2 e 3, prevendo a cessão do contrato e a ciência com a devida informação ao segurador.[5]
Coroando o douto voto, se lê em suas razões, mais o seguinte:
“Dentro dos esforços de uniformização do direito privado europeu, a solução de ‘lege ferenda’ pode ser ainda mais rígida. Em 2004 o Comitê Europeu Econômico e Social manifestou opinião em favor da unificação do direito securitário. Constatou-se que a diversidade dos direitos nacionais constituía sério impedimento à formação de um mercado único de seguros.
Essa opinião foi dada com base nos estudos conduzidos pelo grupo denominado ‘Restatement of European Insurance Contract Law‘, liderado pelo Professor Emérito da Universidade de Innsbruk, Fritz Reichert-Facilides. Grifo meu.
Formou-se, então, rede de pesquisa em direito privado europeu que, em 2009, sugeriu que os Princípios do Direito Securitário Europeu (‘Principles of European Insurance Contrac Law’ ou simplesmente PEICL) fossem adotados como lei modelo.
Assim, o PEICL, quanto ao tema ora sob análise, sugeriu, após o estudo comparatístico, que ‘se a titularidade da propriedade assegurada é transferida, a apólice será extinta 1 mês após a transferência, salvo se segurado e adquirente consentirem no término em prazo anterior ou se o seguro foi feito em benefício do futuro adquirente’ (art. 12:102.1), sendo que o ‘adquirente será considerado segurado desde o momento em que o risco lhe for transferido’ (art. 12:102.2).” (in Revista IBERC, v. 5, п. 2, maio/ago. 2022, págs. 18-38”.
Dessa forma, embora o artigo 785 do Código Civil permita cessão da posição contratual de segurado, bem como a transmissão por endosso, deve haver a comunicação e aceitação da seguradora, que pode recusar de forma fundamentada, apontando, por exemplo, que a mudança de segurado acarreta alteração de risco ou de regime. Como se destaca em doutrina, ‘a finalidade precípua da comunicação da alienação do bem, para efeito de promover a transferência do seguro – se for o caso – é permitir ao segurador que avalie existir ou não o agravamento do risco’. Ocorre que, na realidade socioeconômica brasileira, não é incomum que as cessões de posição contratual ocorram de maneira informal, sem a devida comunicação à outra parte, como se consolidou com a denominação de ‘contrato de gaveta’. (Temas atuais de direito dos seguros: Tomo II [livro eletrônico], 1. ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, RB-7”. Bis in idem, quanto ao grifo no voto do douto relator.
Finalizo constatando que o substancioso voto proferido neste recurso especial pelo eminente ministro relator, Ricardo Villas Bôas Cueva, revela, de forma irrefutável, sua profunda compreensão das complexas questões jurídicas securitárias, envolvidas no presente caso.
Com clareza e erudição, o ministro navegou pelos intrincados meandros da legislação pátria e alienígena, oferecendo uma fundamentação robusta e tecnicamente impecável. Sua análise criteriosa não apenas esclareceu pontos sensíveis de interpretação, como também trouxe a luz aspectos inovadores que devem estar insertos na novel legislação securitária, contribuindo para o desenvolvimento e aprimoramento da lei em sintonia com a atual jurisprudência em matéria infraconstitucional. Tal contribuição eleva o nível do debate jurídico com os princípios de justiça e equidade no momento de uma nova transformação da legislação do Direito do Seguro.
É o que penso.
Porto Alegre, 18 de setembro de 2024.
[1] Precedente do próprio relator no REsp nº 1.352.419/SP. Terceira Turma, julgado em 19/8/2014, DJe, de 8/9/2014.
[2] José Augusto Delgado. Comentários ao Novo Código Civil, volume XI, tomo I. Editora Forense. Rio de Janeiro, 2004, página 522
[3] Artigo 1º. É aprovado o Código Civil que faz parte do presente decreto-lei.
[4] Artigo 577º – Admissibilidade da Cessão
[5] Codice delle assicurazioni private. D.ls 7 settembre 2005, n.209.