Alteração Relevante do Risco

Instado a me manifestar sobre hipótese tida como de agravamento relevante de risco por ocasião da renovação de uma apólice de seguro de responsabilidade civil profissional à base de reclamação, faço, agora, uma resumida síntese, de mais um tema que julgo importante abordar neste ensaio.

Em obra recente, direto ao ponto, discorrem Bruno Miragem e Luiza Petersen:

“No tocante ao comportamento exigido dos contratantes em caso de alteração do risco, sobretudo à exigência de comunicação da circunstância agravante, percebe-se amplo debate no direito comparado -e, de forma mais tímida, no direito brasileiro – a respeito da sua natureza jurídica”.[1]

Saber, portanto, se é uma imposição legal ou um ônus que recaí sobre o segurado, durante a vigência do contrato ou por ocasião da renovação da apólice de seguro, um dos corifeus do direito italiano do século passado, afirmou que sempre estará presente essa questão objetivando o pagamento, ou não, da indenização securitária.[2]

Ao comentar o novo regime legal do contrato de seguro, introduzido pelo DL nº 72/2008, de 16 de abril, criado pela lei portuguesa que vai para além das circunstâncias mencionadas no questionário pelo tomador do seguro, J.C. Moitinho de Almeida, adverte;

“Trata-se de solução que as mais recentes leis europeias repudiaram (§19(1º) da VVG alemã, artigos 11º da lei luxemburguesa, 5º da lei belga, 4º, da lei suíça e 10º., da lei espanhola. Neste sentido, também, o artigo 47 do Projecto da Lei brasileira, nº3.555, de 2004”.[3] (Sic).

Todavia, o experiente jurista português ressalta que o segurado pensa que é o segurador quem formula as questões úteis para a apreciação do risco, e não imagina, pois, que lhe incumbe antecipar-se e procurar ele próprio os fatos que possam ter incidência no custo da garantia, convidando, portanto, atenção ao que está dito no artigo L. 112-3.[4]

Em comentários ao artigo acima citado recolhido no Code des assurances, é feita uma arguta observação por uma conhecida autora francesa, Yvonne Lambert-Faivre, que assinala que “esse questionário é limitativo, e se o segurador omitir uma questão sobre aspecto mesmo importante, o segurado não tem culpa. Os seguradores devem, pois, cuidar para que os questionários sejam tão completos e exaustivos quanto possível”.[5]

A lei, – referindo-se aqui a portuguesa -, assevera Menezes Cordeiro, reporta-se-lhe como um dever. Diz mesmo, de modo quiçá demasiado enfático que, com referência à declaração inicial do risco, que o tomador do seguro ou o segurado está obrigado. Tal semântica terá derivado da inspiração no § 1º do VVG alemão, epigrafado dever de informação (Anzeigepflicht), justamente a propósito da declaração pre-contratual de risco. A doutrina corrige: ao contrário do que resulta do título, trata-se de um encargo legal, ou gesetzliche Obliengenheit”.[6]

No Brasil, ainda tramitando no Senado da República, o Projeto de Lei do IBDS na parte que trata da Formação e Duração do Contrato, se encontra previsto textualmente no artigo 52, a seguinte dicção:

“A seguradora deverá alertar o proponente sobre quais são as informações relevantes a serem prestadas para a aceitação e formação do contrato, esclarecendo nos seus impressos e questionários as consequências do descumprimento deste dever.

Parágrafo único. A seguradora que dispensar as informações relevantes, não exigi-las de forma clara, completa e inequívoca, ou não alertar sobre as consequências do descumprimento do dever de informar, não poderá aplicar sanções com base em infração contratual, salvo conduta dolosa do proponente ou de seu representante”.[7]

Já no anterior Código Civil de 1.916/17, o artigo 1.444, conhecido como Código Belivaqua, dizia: “só se estabelece pena para o segurado que pecar contra esse preceito – não fizer declarações verdadeiras e completas, omitindo circunstâncias -, porque ele é que tem maiores possibilidades de fazê-lo”.[8]

É o que já está dito, atualmente, no artigo 766 do Código Reale através de uma redação mais técnica e mais esclarecedora do que a de outrora. Diz o dispositivo:

“Se o segurado, por si ou por seu representante, fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado ao prêmio vencido.”[9]

Destarte, trata-se no caso vertente em saber se um escritório de advocacia contratado para resolver processos aforados contra uma instituição teria legitimidade para receber indenização de uma seguradora contratada, quando seus componentes cometeram ainda no decurso do contrato inicial, inúmeras falhas em sua atuação profissional.

O escritório teria postulado em juízo, através de ação declaratória, uma sentença que declarasse a obrigação indenitária de uma determinada seguradora, visando efetivar o pagamento da indenização prevista na apólice de seguro de responsabilidade civil por ele contratado.

A seguradora, de sua vez, negou o pagamento da indenização sob o pálio de que os profissionais do escritório segurado teriam conhecimento das inúmeras falhas cometidas com os respectivos clientes e, que, jamais ela teria sido sequer notificada no decorrer do contrato, mormente no momento da renovação da sobredita apólice de seguro.

O juiz de piso julgou a demanda aforada pelo escritório segurado improcedente.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – foro competente – no voto proferido pelo relator – salientou que a moldura, enfim, alicerçava a exclusão da cobertura para atos e fatos conhecidos, extraindo-se disso, o acerto da improcedência da peça inaugural, notadamente porque o próprio escritório segurado teria reconhecido que precisava adotar medidas pontuais e relevantes objetivando adequar seus procedimentos frente a inúmeras falhas na sua prestação de serviços aos seus clientes.

Restaria, portanto, saber se o segurado teria sucesso em um eventual recurso a ser pleiteado junto ao Superior Tribunal de Justiça.

Todavia, antes de adentrar na possibilidade de aviar recurso pertinente à espécie é oportuno ressaltar o que já advertia Carvalho Santos, ao dissertar sobre o artigo 1.444 do Código Bevilaqua no sentido de que “a jurisprudência de nossos tribunais, como não podia deixar de ser, tem considerado nulo o contrato de seguro sempre que se provar fraude ou falsidade por alguma das partes”.[10]

De fato. Esse entendimento continua atual. Tanto que em julgamento no Superior Tribunal de Justiça, o ministro Humberto Martins, destacou que “mais do que obrigação decorrente de lei, o dever de informar é uma forma de cooperação, uma necessidade social. Na atividade de fomento ao consumo e na cadeia fornecedora, o dever de informar tornou-se autentico ônus proativo incumbindo aos fornecedores (parceiros comerciais, ou não, do consumidor), pondo fim à antiga e injusta obrigação que o consumidor tinha de se acautelar (caveat emptor)”.[11]

Tenho combatido muitas vezes o comportamento de determinadas seguradoras na hipótese em que não há má fé comprovada do segurado no sentido intencional de agravar o risco posto.

Todavia, não posso silenciar quando se trata de dado relevante no contrato de seguro o devido processo de cooperação – uma construção inserta no problema social da obrigação, segundo Betti,[12] que deve reinar entre as partes contratantes, vale dizer, o segurado e o segurador.

Ao azo, não posso também deixar de me manifestar nesta oportunidade quando se trata de lege ferenda de alterar a redação de um dispositivo do Código Civil, que, de lege lata, sempre combato por sua extremada parcimônia.

Cuida-se do artigo 787 do Código Civil em que é previsto o seguro de responsabilidade civil. Há um projeto de lei – PL 1738/22 – também no Senado – que pretende ainda restringir, somente às hipóteses de ato doloso, para que se efetive a sub-rogação do segurador que paga a indenização ao segurado. Sobredito projeto de lei afronta e entre em testilhas com o inciso III do artigo 346 do Código Civil e seu Capítulo que cuida da Obrigação de Indenizar.

Se, porventura, for aprovada tal redação se estará involuindo, já que se quer ampliar o conteúdo deste artigo de lei dando, de fato, uma redação que atenda melhor o interesse, quer do segurado, quer do segurador.

É preciso, pois, estar em sintonia com a evolução de fatos que cresceram desmesuradamente no seguro de responsabilidade civil. Normas ancilares que se estribam em resoluções podem perder seu alcance frente a qualquer alteração que se proceda na lei ordinária. O que se deve então imaginar quando elas são coloridas com exclusão de institutos, que em vez de dar uma sustentação mais robusta ao texto são expostas através de filigranas que só atormentam o verdadeiro Direito.

O legislador deve se preocupar mais com o todo e não com certos casuísmos, que, em síntese apertada, vislumbrem uma redação que ao fim e ao cabo compactuam, infelizmente, com a má-fé sempre combatida, quer pelo direito positivo, quer pela doutrina em qualquer viés contratual, a teor do princípio insculpido no artigo 422 do nosso Código Civil aonde preceitua que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

É com o todo que temos que nos preocupar para a construção de um direito securitário mais forte e consentâneo com seus princípios basilares, aliás, de sabença básica aos lidadores da respectiva área dessa atividade profissional.

É o que penso, s.m.j.

 

Porto Alegre, 10/07/2022.

 

Voltaire Marensi 

Advogado e Professor

 

 

[1] Direito dos Seguros. Forense, 2022, página 227.

[2] Antigono Donati. Trattato Del Diritto Delle Assicurazioni Private. Volume Secondo. Giuffrè Editore. 1954, pág. 394.

[3] Autor citado. Contrato de Seguros. Estudos. Coimbra Editora. 2009, página 13

[4] Bis in Idem.

[5] Droit des Assurances, Paris 2011, página 244.

[6] António Menezes Cordeiro. Direito dos Seguros, 2ª edição. 2016. Almedina, página 634/635. Passim Manfred Wandt, Versicherungsrecht, cit., 5ª ed., Nr 7872 (276).

[7] Projeto de Lei do Senado nº 477, de 2013.

[8] Codigo Civil  dos Estados Unidos do Brasil, volume V, 1934, página 205.

[9] Caput do artigo 766 do Código Civil de 2002.

[10] Código Civil Brasileiro Interpretado, vol. XIX. 8ª edição. Livraria Freitas Bastos 1964, página 297.

[11] Resp. 1.364.915/MG.

[12] Emilio Betti. Teoria General de Las Obligaciones. Prof. Catedrático de la Universidad de Roma. Madrid, 1969, páginas 1/22.